sexta-feira, 8 de outubro de 2021

4. O evangelho de Jesus Cristo crucificado: "É para a liberdade que Cristo nos libertou" (Gl 5,1)


O EVANGELHO DE JESUS CRISTO CRUCIFICADO: “É PARA A LIBERDADE QUE CRISTO NOS LIBERTOU” (Gl 5,1)

Entendendo a carta aos Gálatas

Shigeyuki Nakanose, svd

Maria Antônia Marques

 

 

Vocês sabem que foi por causa de uma doença física que lhes anunciei o evangelho pela primeira vez. E apesar de minha carne ter sido para vocês uma provação, vocês não me desprezaram nem rejeitaram. Pelo contrário, me receberam como a um anjo de Deus, como a Cristo Jesus. Onde foi parar a alegria que tinham? Pois eu sou testemunha disto: se fosse possível, vocês arrancariam os próprios olhos e os dariam a mim. Será que me tornei inimigo de vocês, por lhes dizer a verdade? (4,13-16).[1]

 

Recordando o modo inusitado do nascimento das “igrejas da Galácia” (1,2), Paulo lhes escreveuma carta direta e personalizada, para que elas se esforcem por clarificar as ideias perturbadas pela intervenção do grupo judaizante evoltem aviver na liberdade, igualdade e unidade à luz da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Por volta do ano 53/54 d.C., as comunidades gálatas entraram em crise. Os convertidos gálatas, não judeus (“gentios" ou estrangeiros) em sua maioria, foram “enfeitiçados” pelo grupo de tendência judaizante, isto é, o modo de viver como judeus segundo a cultura e os costumes judaicos, e caíram sob o jugo da Lei: “Ó gálatas sem juízo! Quem foi que os enfeitiçou, a vocês que tinham diante dos olhos os traços bem claros de Jesus Cristo crucificado?Quero saber somente isto de vocês: foi pelas obras da Lei que vocês receberam o Espírito, ou foi pela aceitação da fé?” (3,1-2).

O grupo judaizante radical (1,7; 4,17; 5,7-12; 6,13) tentou impor aos convertidos gálatas a circuncisão – que ocupava lugar central no judaísmo oficial, o sinal da aliança com Deus Javé – como meio de alcançar a salvação, e atacou o evangelho e a prática pastoral de Paulo: “Não existe outro evangelho. No entanto, alguns estão deixando vocês confusos, querendo distorcer o evangelho de Cristo” (1,7).

No dizer de Paulo, o grupo judaizante radical anuncia outro evangelho, baseado na justiça pela observância da Lei, provocando e justificando a segregação e a desigualdade nas comunidades gálatas e até a escravidão no mundo greco-romano. O grupo desvirtuao evangelho baseado na justiça que vem da fé no amor e graça de Cristo Jesus crucificado: “Nós, com efeito, aguardamos ansiosamente no Espírito a esperança daquela justiça que vem da fé. Pois, em Cristo Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm valor algum, e sim a fé que age através do amor” (5,5-6).

            A discriminação, adesigualdade e amarginalização das pessoas são intoleráveis para a “verdade do evangelho” (2,5), segundo a liturgia batismal, citada por Paulo:“não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um só em Cristo Jesus” (3,28). Afinal, quem é Paulo que prega a unidade das pessoas sem as barreiras racial, social e de gênero?

 

Conhecendo Paulo

 

Considero tudo como perda, diante do bem superior que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado nele. E isso, não tenho mais como justiça minha aquela que vem da Lei, mas aquela que vem de Deus e se baseia na fé (Fl 3,8-9).

 

            Paulo, “circuncidado no oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus” (Fl 3,5), aderiu à fé e ao amor de Cristo Jesus. O judeu,“perseguidorda Igreja” (Fl 3,6; cf. Gl 1,13),transformou-se em seguidor de Jesus crucificado.Ele passou a pregara mensagem da justificação pela obra da fé, pelo esforço do amor e pela constância da esperança no Senhor Jesus Cristo (cf. 1Ts 1,3).

Segundo a prática religiosa da sinagoga do seu tempo, Paulo, um judeu fariseu, bastante cônscio de seu trabalho em observar a Lei de Moisés, pregava a salvação pela observância da lei da pureza, a obra salvífica que era justificada pela fé no Deus poderoso e castigador (cf. Dt 30,15-18) e argumentada pela teologia da retribuição – que Deus retribuía saúde, riqueza e vida longa para quem observava a Lei, com a exigência dos sacrifícios de purificação, o pagamentodos dízimos etc. (cf. Lv 26; Dt 28; Ml 3,6-12). Dessa forma, seria possível manipular Deus conforme a justiça pela observância da Lei. Observa a Lei, eDeus é obrigadoa retribuir ea ajudar a pessoa “justa”.    

Como fariseu, Paulo desprezava e discriminava os pobres, os doentes e os estrangeiros como impuros, pois eleseram vistos como pessoas queinfringiama Lei. Em sua prática da Lei, Paulo tornou-se perseguidor do grupo dos judeus helenistas crentes em Jesus de Nazaré,acusado deestar pregando e perturbandoa ordem religiosa (Templo e Lei) de Jerusalém, que justificava o poder e as riquezas dos governantesjudaicos (cf. At 6,8-7,60). Paulo, um fariseu irrepreensível, um homem cheio de si e autossuficiente: “Quanto à Lei, fariseu;quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que há na Lei, sem reprovação” (Fl 3, 5-6; cf. 1Cor 15,9).

            No entanto, ele mudou a sua vida.Graças ao contato com a vivência comunitária e fraterna dosseguidores e das seguidoras de Jesus que sofriam perseguição(cf. At 9,10-19), Paulo, aos poucos, foi sendo tocado pelo amor gratuito de Jesus de Nazaré, ocrucificado, que seria “escândalo” para judeus (cf. Dt 21,22-23). Ele começou a acreditar que Jesus crucificado por Pilatosera o Messias de Javé, o Filho de Deus, como havia anunciado o Segundo Isaías, na forma do servo sofredor (cf. Is 42,1-9; 52,13-53,12). Ele descobriu que o projeto da vida foi manifestado na cruz de Jesus como graça de Deus, e não pela observância da Lei.

Na prática, Paulo abandonou o grupo dos judeus fariseus, comoseu modo legalista e ritualista de ver Deus, a Escritura, as pessoas e as coisas, e ingressou no movimento de Jesus Cristo crucificado, praticando e experimentando no dia a dia o amor gratuito e incondicional de Deus, sobretudo para com as pessoas enfraquecidas (cf. Is 52,1-12; 53,11; 61,1-2). Em seu longo processode transformação e aprendizagem (1,15-18), ele começou a pregar a salvação pela prática do amor, a obra salvífica justificada pela fé na graça de Deus misericordioso, Pai e Mãe (cf. Os 11,1-4; 1Ts 2,1-12), ou seja, a teologia da gratuidade (cf. Jn 4; Rm 5,1-2). 

No trabalho missionário, Paulopregou e experimentou o evangelho que foi manifestado na cruz de Jesus Cristo, na qual Deus Pai manifestou o seu amor gratuito oposto à cobiça e ganância dos poderosos – a ação redentora de Deus na história (cf. Fl 2,6-11).Ao pregar e praticar o evangelho do amor gratuito para com os pobres, possivelmente Paulo estava se contrapondo apregações rivais, como o evangelho do imperador romanoque anunciava todos os seus projetos e vitórias, tudo o que era do interesse do impériocomo uma “Boa Nova” para o povo. Como pregador judeu, Pauloenfrentoua oposição do judaísmo tradicional, baseado na observância da Lei (cf. 1Ts 1,4-10; Fl 1,12-30).

            Sendo um judeu formado na cultura greco-romana – judeu helenista como Estevão e Filipe (cf. At 6,1-6) –, Paulo se formou nas comunidades helenistas de Damasco (cf. 1,17; 2Cor 11,32) e iniciou o seu trabalho missionário na comunidade de Antioquia da Síria (cf. At 11,19-30), em sua maioria judeus helenistas e não judeus, uma comunidadede língua grega, mais aberta à realidade multicultural e multirracialde Antioquia, a terceira maior cidade do Império Romano, depois de Roma e Alexandria. Nela a circuncisão e as leis alimentares judaicas não eram impostas aos seguidores gentios de Jesus Cristo.

            Com o tempo, a comunidade de Antioquia, com tal prática,entrou em conflito com a “igreja mãe de Jerusalém” (1,18-24), formada em sua maioria por judeus que acreditavam em Jesus como o Messias prometido, mas assumia uma prática mais tradicional,pregando um evangelho subordinado àstradições judaicas. A postura dos judaizantesera clara: os gentios poderiam participar das promessas feitas por Deus ao povo de Israel desde que estivessem dispostos a observar os preceitos da Lei.       

O conflitoem torno da Leiresultou na realização da primeira assembleia em Jerusalém,por volta do ano 49, cuja discussão foi sobre a imposição da circuncisão e de outros costumes judaicos aos gentiosque seguiam Jesus (2,1-10; cf. At 15). Apesar da dura oposição dos “falsos irmãos” (2,4), um grupo judaizante radical na igreja de Jerusalém, Paulo defendeu a prática missionária segundo a “verdade do evangelho” (2,3-5), e selou acordo com os apóstolos de Jerusalém. Eles consideravam sua missão restrita aos circuncidados, mas mesmo assim reconheciam e apoiavam a missão do grupo de Paulo “em favor dos gentios” (2,7-10).

            Entretanto, os “falsos irmãos” (cf. At 15,1.5), acreditavam na necessidade de todos os seguidores de Jesus se tornarem judeus e exigiam delesaobservância da Lei em sua totalidade, rejeitando o acordo firmado na assembleia de Jerusalém. Historicamente, a influência desses judaizantes radicais chegou à Macedônia, à Grécia e à Ásia Menor, causando conflito com a missão de Paulo. 

            Após a assembleia, Paulo desempenhou com maior vigor a sua missão para com os gentios. Na segunda viagem, durante 49-52 d.C., o grupo de Paulo realizou a missão em meio aos gentios da Ásia Menor, da Macedônia e da Grécia, fundando as comunidades na Galácia, Filipos, Tessalônica, Corinto etc. (At 15,36-18,23), comunidades compostas por judeus e gentios que tentavam viver a irmandade em nome de Jesus Cristo crucificado.

            Com o tempo, porém, as comunidades de seguidores e seguidoras de Jesuscomeçaram a enfrentarvários problemas: a oposição dos judeus, os “falsos circuncidados”, em Filipos (Fl 3,2); perseguições dos judeus e governantes romanos contraas pessoas que seguiamJesusem Tessalônica (cf. 1Ts 1,2-2,12); conflitos internos de vários grupos em Corinto,entre outros (cf. 1Cor 1,10-16). As comunidades de Corinto, por exemplo, já estavam apresentando o primeiro sinal do conflitoprovocado pelos grupos “espirituais” judeu-cristãos, que separavam a fé em Jesus Cristo da vida prática (cf. 1Cor 2; Jd 19; 1Jo 4,1-6). Era a enorme diversidade do cristianismo do século I, que seguirá muito forte ainda nos séculos seguintes, e que, de certa maneira continua ainda hoje.

As comunidades gálatas também não escaparam da crise provocada pela diversidade. Nelas, por volta do ano 53/54 d.C., surgiram os conflitos provocados pelos dois grupos principais: por um lado, o grupo “judaizante” tentava submeter à circuncisão e aos costumes judaicos os gentios que abraçaram a mensagem de Jesus, suscitando a segregação e a desunião nas comunidades (cf. 3,1-5,12); e por outro, o grupo “liberal” exagerava a liberdade cristã, desrespeitando qualquer mandamento e criando uma crise ética (cf. 5,13-26). De certa forma, essa situação crítica das comunidades gálatas era marcada pela realidade particular do povo da Galácia.

 

Conhecendo a Galácia

 

O nome Galácia deriva dos gauleses (gálatas), descendentes de antigos imigrantes celtas, provenientes do território da Gália (França, Bélgica, Itália etc.), que invadiram, em 279-277 a.C., o centro-norte da Ásia Menor (a região entre a Capadócia e o Ponto). Os gálatas foram subjugados pelo Império Romano em 189 a.C. Após um longo período de vassalagem, o reino gálata passou a ser a província romana de Gálatas, com a capital Ancira (hoje Ancara), em 25 a.C., ficando, desde então, sob a dominação da tirania romana.

Como província romana, o império reorganizou a Galácia propriamente dita, anexando-lheo centro-sul da Ásia Menor: a região da Frígia e Pisídia (Antioquia daPisídia, Icônio, Listra e Derbe, cidades refundadas como colônias romanas). Por isso, no tempo de Paulo, a Galácia era uma província do Império Romano na Anatólia Central (moderna Turquia): o centro-norte e o centro-sul da Ásia Menor. Entretanto, havia diferença entre as duas regiões: de um lado, a maioria dos habitantes do norte, chamados gálatas, era de etnia celta e falava a língua gálata, e, de outro, no sul da Galácia, com as cidades helenizadas e romanizadas, a maioria dos habitantes, também chamados gálatas, não era celta, mas umapopulação mista: romanos, gregos e judeus. Existiam várias colônias judaicasna região, como também sinagogas.

            Quanto à vida do povo, a Galácia era basicamente uma província rural agropecuária: produção de cereais, vinhos e pequenos rebanhos. A produção de lã era conhecida e trazia riqueza à província. Sabe-se que as enormes fazendas de ovelhas ocupavam grande parte da área central e meridional da Galácia e que a maioria das terras pertencia ao Império Romano. Como práxis do império, a riqueza da produção da região beneficiava a elite local, e era levada a Roma pelos “mercadores da terra” para enriquecer a autoridade imperial (cf. Ap 18). A maioria da populaçãoestava submetida à escravidão do império e sofria, vivendo na miséria e sofrendo espoliação e violência dos governantes.

Com o longo processo de romanização, a sociedade gálata era marcada pelo sistema de escravatura. O duro trabalho nas fazendas de ovelhas, por exemplo, empobrecia e enfraquecia o povo. O sofrimento do povo aumentava ainda mais com a dominação cotidiana do império. Para além da brutalidade e violência do exército e da cobrança sistemática do imposto e do monopólio do comércio, a legitimação do poder imperial era feita pela implantação da religião e cultura promovidas pelo Império Romano.

            Até agora, foram escavados três templos júlio-claudianosna Galácia: Ancira, Pessinuntee Antioquia da Pisídia. Os templos, construídos no tempo de Augusto (27 a.C-14 d.C.) ou Tibério (14-37 d.C), eram dedicados ao culto imperial, para implantar e fortalecer o domínio do império via poder e carisma do imperador humano,que era considerado divino. No culto, o evangelho “Boa Nova” de César Augusto, o senhor do império e da terra, era proclamado exaltando o império e o imperador por estabelecerem na terra a paz e a salvação.

            Em todas as áreas controladas por Roma, a Boa Nova do imperador devia ditar e moldar o cotidiano do povo dominado. Sua divulgação era muito eficaz. O evangelho imperial percorria todo o império através da infraestrutura bem desenvolvida – rede de hospedarias, correios, rotas e estradas – com a finalidade de consolidar o mundo num só império. Mas as mesmas estradas, Paulo percorria para levar o evangelho de Jesus Cristo crucificado,introduzindo um novo sistema de relações capaz de mudar a relação humana. Ao vínculo de senhor/escravo podia sobrepor-se o da irmandade e o da liberdade, que foi proclamado nas comunidades da Galácia.

 

Conhecendo as comunidades gálatas

           

Durante a primeira viagem missionária (46-48 d.C.), Paulo e Barnabé provavelmente percorreram o sul da Galácia, a região habitada pelos romanos, gregos e judeus, passando por Icônio, Lístra e Derbe, entre outras (At 13,50-14,28). Eles realizaram a missão entre os judeus e os simpatizantes gentios nas sinagogas por onde passaram, fundando várias comunidades. Paulo voltou para lá durante a sua segunda viagem (49-52 d.C.; cf. At 16,1-8)e percorreu também o norte da Galácia (a região em torno das cidades de Ancira e Pessinunte; cf. At 16,6), evangelizando os gálatas propriamente ditos. Na terceira viagem (53-57 d.C.), ele passou de novo pela Galácia e pela Frígia (cf. At 18,23).

            Por volta do ano 50 d.C., nessa região do norte da Galácia, as comunidades de seguidores e seguidoras de Jesus foram fundadas numa circunstância incomum: “Vocês sabem que foi por causa de uma doença física que lhes anuncieio evangelho pela primeira vez” (4,13). No meio dos gálatas, o “evangelho de Cristo” (1,7) havia causadograndeentusiasmo, pois a irmandade pregada em nome de Jesus Cristo crucificado suscitou o sonho de vida e liberdade para quem vivia sob o jugo da escravidão do império. Porém, o entusiasmo durou pouco. Logo depois da segunda visita de Paulo,essas comunidades “abandonaram tão depressa a graça de Cristo”(1,6) e caíram na escravidão da Lei de Moisés, perdendo a irmandade e a unidade. E, para piorar a situação, alguns membros inclusive contestaram a autoridade de Paulo e seu evangelho (1,7-10).

            Possivelmente, durante a longa permanência de dois anos e meio em Éfeso (53-55 d.C.), uma espécie de base missionária(cf. At 18,18-21,1), Paulorecebeu notícias de um ataque contra ele e seu evangelho em meio às comunidades da Galácia que estavamem crise. A carta aos Gálatas, então, foi escrita, com muita emoção, como uma resposta de Paulo nesse contexto conturbado[2], por isso, ela revela a discussão e a situação pelas quais as comunidades gálatas estavam passando e, ao mesmo tempo, descreve as características delas em relação a Paulo:

a)    Os membros das comunidades gálatas eram gentios que só conheceram o Deus judeu e a mensagem de Jesus depois de sua conversão de vida (4,8-9; 5,2-3; 6,12).

b)    Comunidadescom a língua gálata: “Foi desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado” (3,1). Provavelmente, Paulo teve de recorrer a desenhos para se comunicar, com muito amor e esforço, trabalhandoduramente (4,11).

c)    As comunidades acolheram Paulo, um enfermo judeu, sem discriminação (4,13-14). O laço afetivo das comunidades com Paulo era tão forte que fez Paulo declarar: “se fosse possível, vocês arrancariam os próprios olhos e os dariam a mim” (4,15).

d)    Paulo anunciara a “cruz de Jesus Cristo” (3,1) na qual a graça de Deus foi dada: “Não torno inútil a graça de Deus. Porque, se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu inutilmente” (2,21). Por graça, os convertidos gálatas tornaram-se pessoas capazes de amar e de se pôra serviço uns dos outros (5,13).

e)    No batismo, o evangelho de Jesus Cristo crucificado com seu amor gratuito, foi assumido pelos gentios pobres sofridos como fonte de liberdade, irmandade e igualdade em ummundo escravagista (3,23-29).

f)     O ponto principal de discussão e de crise é “outro evangelho” que “distorce o evangelho de Cristo” (1,7). O grupo judaizante radical insiste: o seguidor e a seguidora de Jesusdevem submeter-se à prática de todas as leis judaicas, como a circuncisão e as leis alimentares, para alcançar a salvação (2,11-21). Mas dessa forma o grupo agitador estápregando outro evangelho e levando as comunidades ao jugo da Lei, provocandosegregação e desunião (2,11-21).

g)    Os convertidos gálatas estavam prestes a se submeter à Lei de Moisés (4,1) e a trair a amizade e alealdade para com Paulo, abandonando o verdadeiro evangelho (1,6) e decaindo da graça (5,4). Diante disso, ele afirma: “Meus filhos, por vocês eu sofro de novo as dores de parto, até que Cristo se forme em vocês” (4,19). É a situação de dificuldades e sofrimentos.

h)   Alguns membros, convertidos gálatas, se fizeram circuncidar (5,2-4) e exerciam pressões sobre os outros membros das comunidades (6,13).

i)     Havia também o grupo helenizado com o espírito da busca desenfreada por bens, poder e prazer, que radicalizou a liberdade, transformando-a em libertinagem, causando o problema ético e aumentando as tensões internas (5,13-24).   

j)      Os opositoresnegaram inclusivea autoridade do apóstolo Paulo e seu evangelho (1,1-5.7-10).

k)    Diante da situação real de perder as comunidades “amadas”, Paulo, indignado e revoltado, chegou a dizer: “Ó gálatas sem juízo! Quem foi que os enfeitiçou, a vocês que tinham diante dos olhos os traços bem claros de Jesus Cristo crucificado?” (3,1); “Aqueles demonstram interesse por vocês, mas a intenção deles não é boa. Querem separá-los de mim, para que vocês se interessem por eles” (4,17) “Que se mutilemde uma vez aqueles que estão perturbando vocês!” (5,12).

 

Informado da grave ameaça para a fé em Jesus Cristo crucificado, seu verdadeiro evangelho e a prática do amor, igualdade e unidade, bem como da acusação contra sua condição do apóstolo, Paulo escreveu a carta aos Gálatas, cheia de raiva e emoção, provavelmente de Éfeso, entre54/55 d.C.

 

Conhecendo a carta aos Gálatas

 

A carta aos Gálatasémais profundamente marcada pelo tom duro e polêmico do que qualquer outra carta, e é a única carta sem a costumeira ação de graçasnas saudações inicial e final. Ela contém cinco argumentos usados por Paulo contra os adversários: histórico, teológico, exegético, batismal e emocional.

Eis um possível esquema para a carta:

a)    Introdução– 1,1-10: Apresentação do tema “o Evangelho de Cristo”, baseado na graça de Deus.

b)    Primeira parte – 1,11-2,21: Relato autobiográfico e histórico.

c)    Segunda parte – 3,1-5,12: Argumento contra os adversários.

d)    Terceira parte– 5,13-6,10: Exortação ética – liberdade e caridade.

e)    Conclusão– 6,11-18: Severa advertência contra o grupo judaizante radical.

 

Conhecendo os conteúdos específicos

            Convencido do perigo que representava para o Evangelho de Jesus Cristo crucificado, Paulo não poupou críticas fortes contra os grupos formados pelos judaizantes e helenizados radicais, que estavam desvirtuando o valor salvífico do amor gratuito de Jesus Cristo crucificado, a manifestação da graça de Deus. Ele procurou mostrar os conteúdos do verdadeiro Evangelho com base na experiência e na Escritura:

1) Pregar e praticar o Evangelho de Jesus Cristo crucificado (Gl 1,7): o verdadeiro evangelho (Gl 2,5.14) é a própria pessoa de Jesus de Nazaré, que pregou e praticou a justiça e deu sua vida na cruz, por puro amor ao próximo (Gl 1,3-5). A fé na cruz de Jesus é fonte da liberdade, da irmandade, da vida, porque é na cruz de Jesus de Nazaré, que Deus Pai manifestou sua graça, seu amor primeiro e gratuito.

2) Ser herdeiro da promessa de Abraão pela fé em Jesus Cristo crucificado (Gl 3,6-18): o fato de Jesus Cristo – que conviveu com os pecadores e morreu na cruz por amor ao próximo – ser reconhecido como o Messias sofredor e o Filho de Deus (Gl 4,4), é a mensagem essencial de que o Deus da promessa a Abraão (Gn 15,4-8; 18,17-18) reconhece a pessoa não em virtude das obras da Lei, mas de sua prática do amor ao próximo. A fé no Messias sofredor abre a salvação a todos os povos, sem o pré-requisito do cumprimento da Lei, como a circuncisão e as leis alimentares (Gl 2,11-14).   

3) Ter liberdade em Jesus Cristo crucificado (Gl 5,1): no Espírito (o poder do amor gratuito) de Jesus Cristo crucificado, a pessoa torna-se “nova criatura” (Gl 6,15), fica liberta de qualquer lei e de qualquer diferença que possa privilegiar a uns e marginalizar a outros (Gl 3,28).

4) Viver segundo o Espírito (Gl 5,5): quem caminha na fé e no amor do Crucificado é acompanhado pela força criadora, profética, sapiencial e libertadora do Espírito para viver de modo como Jesus viveu: na liberdade, na justiça e no amor, criando irmandade, paz e esperança.

5) Carregar o peso uns dos outros (Gl 6,2):  a verdadeira liberdade cristã é fruto do Espírito de Deus, que leva à vida de caridade, justiça e fraternidade, sobretudo de amor-serviço aos outros (Gl 5,13-6,10).

6) Evangelizar com base na realidade (Gl 4,12): ao contrário do grupo judaizante, Paulo considerou e respeitou os anseios por liberdade e igualdade do povo sofrido e escravizado, formando comunidades de fraternidade sem a imposição das leis e costumes judaicos.

7) Evangelizar junto com os pobres (Gl 2,10): Paulo evangelizou as nações, pondo-se ao lado dos pobres, mergulhando no mundo deles, carregando os fardos do trabalho (Gl 6,2), organizando comunidades de partilha e de fraternidade junto com os pobres (1Cor 4,9-13).

8) Carregar as marcas de Jesus que significam as cicatrizes dos maus-tratos sofridos e suportados pelo Nazareno (Gl 6,14.17; cf. 2Cor 4,10): quem assume o Evangelho de Jesus Cristo crucificado, seu amor gratuito e o espírito da liberdade, será perseguido e maltratado no mundo do legalismo judaico e da escravização do Império. As pessoas que seguem Jesus, porém, mesmo perseguidas, devem gloriar-se na cruz de Jesus Cristo, porque é dela que nasce “o poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1,24), para construir o mundo da partilha e da fraternidade: o Reino antecipado de Deus. 

 

Essas são algumas das principais convicções que orientam e animam Paulo em sua missão. As certezas que podem ser encontradas ao longo da carta aos Gálatas amadureceram aos poucos, à luz de seu próprio trabalho missionário e pastoral, guiado pela reflexão sobre as palavras, ações e vida de Jesus à luz da Escritura, e também à luz da realidade do povo sofrido, dos empobrecidos, marginalizados e escravos como os gálatas.

No contexto do imperialismo romano e da religião legalista e ritualista do judaísmo oficial, Paulo pregou Jesus crucificado e ressuscitado e ousou caminhar na contracorrente, com a proposta do amor gratuito e da justiça do “Servo sofredor”. Quase dois mil anos se passaram, mas o imperialismo continua encarnando em muitas “feras”, devorando pessoas inocentes mediante guerras, ditaduras brutais, trabalhos em condição de escravidão ou semiescravidão, economia selvagem, fomes, violências. E muitas igrejas, com seu Cristo triunfalista, legalista e ritualista, servem para conservar as feras do presente.

 

 

Mensagens principais

 

            A carta aos gálatas tem como tema central a defesa do evangelho do amor gratuito de Deus, manifestado em Jesus Cristo crucificado. Diante do grupo judaizante radical que pregava a necessidade da Lei para a Salvação, Paulo insiste na ação amorosa: “o homem não é justificado pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo. E nós cremos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da Lei. Porque, pelas obras da Lei, ninguém será justificado” (2,16). O importante é a fé que age pelo amor, e não o cumprimento de normas e ritos.

            Esta carta continua questionando o nosso seguimento de Jesus Cristo: a nossa vivência do evangelho é baseada na graça e no Espírito ou no cumprimento de ritos e preceitos? Uma pergunta que precisamos sempre nos fazer. Com estes encontros, queremos mergulhar no estudo e na reflexão da carta aos Gálatas, buscando luzes para iluminar nossa caminhada pessoal e comunitária. Paulo insiste que a vida no Espírito é uma vivência livre, tendo como fruto o amor e seus desdobramentos, que sempre visam o bem do próximo. Eis os principais textos e mensagens para nossa caminhada cristã hoje:

 

            Primeiro: O evangelho de Jesus Cristo Crucificado (2,11-21). As primeiras comunidades que seguiam Jesus enfrentaram muitas dificuldades em romper as barreiras impostas pela Lei judaica, que separavam os judeus dos não judeus. O seguimento de Jesus Cristo exige a superação de toda e qualquer barreira que discrimina e marginaliza uma pessoa. Revendo o passado, vamos olhar a nossa prática para identificar o que nos impede de viver uma vida conforme as exigências do evangelho e reafirmar nosso compromisso com as pessoas crucificadas de hoje.

            Segundo: Todos somos um em Cristo Jesus (3,1-14.26-29). É importante compreender que a fé nos torna filhas e filhos de Deus e que Nele todos somos um. Cada povo é diferente, mas as diferenças não justificam nenhuma forma de separação. Vamos refletir sobre a unidade que somos chamadas e chamados a vivenciar a partir de Cristo Jesus. Como pessoas batizadas, a nossa vocação é deixar que Cristo viva em nós, ou seja, olhar a realidade com os olhos D’Ele e romper as barreiras social, religiosa, cultural e de gênero.

            Terceiro: Viver o amor e a ternura na missão (4,12-20). Paulo vivenciou uma experiência profunda de acolhimento nas comunidades dos gálatas apesar de sua doença, o que favoreceu o amor e a amizade entre eles. Em nossas atividades missionárias, é fundamental criar e aprofundar laços de amizade e de afeição com as pessoas com as quais entramos em contato. A vivência de verdadeiras relações fraternas na missão fortalece o compromisso com a construção do Reino de Deus.

            Quarto: O viver em Cristo nos torna livres (5,1-12). Como pessoas cristãs, recebemos o Espírito de Deus como força criadora, profética, sapiencial e libertadora para viver como Jesus viveu. As comunidades cristãs têm a missão de vivenciar a liberdade e uma fé que age através do amor (5,7). A vida cristã deve ser orientada pela esperança, justiça e solidariedade. O excessivo apego a normas, ritos e regras pode nos afastar do seguimento de Jesus de Nazaré.

            Quinto: Livres para amar e servir (5,13-6,10). Para não deixar dúvidas sobre a identidade cristã, Paulo apresenta uma série de exortações às comunidades dos gálatas e reforça que a vocação cristã é para a liberdade, o que implica viver segundo o Espírito. Aquele ou aquela que vive segundo as obras da carne provoca rupturas consigo, com Deus e com o próximo. A vida segundo o Espírito é pautada pelo amor, que se expressa no serviço solidário para com todas as pessoas. Estas exortações continuam sendo atuais para nós e nossas comunidades.

 

            Que a leitura e a reflexão da carta aos Gálatas possam lançar novas luzes para a nossa vivência individual e comunitária. Deixemos ecoar em nossos corações os apelos para uma vida cuja marca seja o amor solidário para com todas as pessoas: “Não nos cansemos de fazer o bem” (6,9a).

 



[1] Importante: onde não estiver indicado o livro bíblico, a citação é da carta aos Gálatas. Os textos foram extraídos, em sua maioria, da Nova Bíblia Pastoral, São Paulo, 2015.

[2] Alguns pesquisadores têm proposto as comunidades do sul da Galácia como os destinatários da carta aos Gálatas, datando a carta por volta do ano 50, de Corinto. Esta discussão continua em aberto. 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

3. Um Deus ciumento e vingativo. Uma leitura de Dt 13,7-12

 

UM DEUS CIUMENTO E VINGATIVO

Uma leitura de Dt 13,7-12

Shigeyuki Nakanose, svd

Maria Antônia Marques

Centro Bíblico Verbo

 

Intolerância, condenação e perseguição contra outras religiões e divindades também fazem parte da realidade experimentada em nossa sociedade. Basta recordar notícias, como por exemplo: “Sínodo da Amazônia: ultraconservadores roubam estátua indígena de igreja e jogam no Rio Tibre em Roma. A imagem era uma réplica da que foi usada em procissão e orações no Vaticano, durante o Sínodo dos Bispos sobre a região amazônica. Vaticano afirma que se tratava somente de uma representação da ‘sacralidade da vida’. Grupos ultraconservadores chamaram de ícone ‘pagão’”.[1]

Com frequência ouvimos notícias de ataques contra diferentes igrejas e movimentos religiosos. Em nome de uma fé pura, destroem-se símbolos religiosos de diferentes igrejas. O Antigo Testamento também registra várias perseguições contra outras religiões e divindades. Um das perseguições mais conhecidas é a reforma do rei Josias que destrói os santuários do interior e as divindades domésticas dos camponeses em nome de Javé, o Deus do Estado, seguindo a lei escrita em Dt 13,7-12. Por que o rei executa a perseguição? Quem é Javé oficial?   

           

 

1. Javé oficial persegue outras divindades com violência

 

Com característica típica de uma antiga bênção semita, Jacó proclama as bênçãos para os seus filhos em Gn 49,1-28 – as “bênçãos de Jacó”. Para José, é reservada uma bênção mais longa, por causa da proeminência da “Casa de José” (Efraim e Manassés) na história de Israel:

 

José é potro selvagem, potro junto à fonte, burros selvagens junto ao muro. Os arqueiros os irritam, desafiam e atacam. Mas o seu arco fica intacto e seus braços se movem velozes, pelas mãos do Poderoso de Jacó, do Pastor e Pedra de Israel, pelo Deus de seu pai que o socorre, por Shadai que o abençoa: as bênçãos que descem do céu e as bênçãos do oceano embaixo, bênçãos das mamas e do útero. As bênçãos de seu pai são superiores às bênçãos dos montes antigas e às atrações das colinas eternas. Que elas venham sobre a cabeça de José, sobre a fronte do consagrado entre os irmãos (Gn 49,22-26).

           

            Como a maioria dos textos do Antigo Testamento, a última redação do texto das “bênçãos de Jacó” foi feita por volta do ano 400 a.C., no período de Neemias e Esdras, no qual o monoteísmo de Javé foi consolidado: “Portanto, reconheça hoje e medite no coração: Javé é que é o único Deus, tanto no alto do céu, como cá embaixo na terra. Outro não existe (Dt 4,39; cf. Ro, 2018,33-73).

Apesar disso, as bênçãos de José conservam, em Gn 49,25, as várias denominações antigas de deuses – o Deus (El) de seu pai; Todo-Poderoso (Shadai); o Deus das mamas e do útero – e refletem a sociedade politeísta das tribos de Israel, formadas de diversas origens. Nas últimas décadas, a arqueologia e as pesquisas literárias têm comprovado que a maioria dos primeiros israelitas era cananeus e prestava cultos aos vários deuses e deusas, cultuados na sociedade de Canaã:

 

- El: “‘Eu sou o El de Betel, onde você (Jacó) ungiu uma coluna sagrada e me fez um voto’. Agora levante-se! Saia dessa terra e volte para a terra de seus parentes” (Gn 31,13). El é o Deus supremo do panteão de Canaã e de Ugarit (LANG, 2002, 24-25). A proeminência do Deus El reflete o nome “Israel”, que significa “El é quem luta” (cf. Gn 32,29);

- Shadai: “Deus falou a Moisés: ‘Eu sou Javé. Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó como El Shadai, mas a eles não dei a conhecer meu nome de Javé” (Ex 6,2-3). El Shadai é o Deus das estepes, das montanhas (RÖMER, 2016, 84-85). Na Bíblia grega (LXX), “Shadai” é traduzido por “todo-poderoso”;

- Elohim: “‘Eu sou o Deus (Elohim) do seu pai, o Deus (Elohim) de Abraão, Deus (Elohim) de Isaac, Deus (Elohim) de Jacó’. Moisés cobriu o rosto, pois teve medo de olhar diretamente para Deus (Elohim)” (Ex 3,6). Elohim é o Deus dos pais, o Deus dos antepassados (Gn 31,53; cf. VAN DER TOORN, 1996, 255-265).

- Baal, “o senhor”: “E, aconteceu, nessa mesma noite, que Javé disse a Gedeão: ‘Você destruirá o altar de Baal que pertence a seu pai, e quebrará o poste sagrado da deusa Aserá que está ao lado’” (Jz 6,25). Com o movimento da centralização do culto em Jerusalém, em nome de Javé, o Deus nacional, os redatores deuteronomistas proibiram cultuar qualquer outra divindade. Contudo, Baal, considerado proprietário do solo e divindade da chuva e da fecundidade, era bem cultuado pelos camponeses israelitas. Sua imagem foi colocada até nos santuários dos reis para promover o culto nacional (1Rs 16, 29-32; 2Rs 21,1-4; cf. RÖMER, 2016, 116-122).

- Aserá: O poste sagrado (Aserá) é o emblema da Deusa do amor e da fecundidade (Ex 34,13). Na mitologia ugarítica, Aserá é esposa de El. No Antigo Testamento, ela aparece como mulher de Baal (1Rs 16,33; 2Rs 21,3). Segundo as últimas pesquisas arqueológicas, Aserá era cultuada ao lado de Javé nos santuários israelitas (LIPINSKI, 2018,139-144). 

- Terafim: “Labão tinha ido tosquiar o rebanho, e Raquel roubou os terafins que pertenciam a seu pai” (Gn 31,19.30), Os terafins são as divindades domésticas, uma espécie de deus do lar, muitas vezes associado à fé no “efod”, um antigo objeto cultural, destinado à adivinhação (Jz 17,5: cf. FARBER, 2018, 447).

 

Agora, quem é Javé?[2] A compreensão tradicional do Antigo Testamento é marcada pelo monoteísmo, que apresenta Javé como o Deus único de Israel. No entanto, nas últimas décadas, a arqueologia e as pesquisas literárias comprovaram a existência de um panteão das divindades e Javé como uma delas, ao lado El, Baal e Aserá. Com a chegada da monarquia em Israel, Javé, o Deus do exército (Ex 15,2-3), ganha pouco a pouco o espaço e é cultuado como o Deus nacional do Estado, destronando os demais. 

Na história do reino de Israel Norte[3], o rei Jeú, junto com Eliseu, por exemplo, proclama Javé como a divindade nacional do Estado, massacrando os adoradores de Baal e Aserá:

 

Jeú reuniu todo o povo e falou: “Acab cultuou pouco a Baal. Jeú vai cultuá-lo muito mais. Agora, portanto, chamem todos os profetas de Baal, todos os seus fiéis e sacerdotes. Ninguém deve faltar, pois quero oferecer um grande sacrifício a Baal. Quem faltar, morrerá”. Jeú estava agindo com esperteza para acabar com os fiéis de Baal. [...] Jeú entrou para oferecer sacrifícios e holocaustos. Do lado de fora, porém, tinha colocado oitenta homens, com esta ordem: “Quem deixar escapar uma só dessas pessoas que eu vou entregar-lhe, pagará com a própria vida”. Logo que terminou de oferecer o holocausto, Jeú disse aos guardas e escudeiros: “Entrem e matem todos. Não deixem sair ninguém”. Os guardas e escudeiros os mataram a fio de espada e os lançaram fora. Voltaram novamente à cidade, ao templo de Baal, arrancaram as colunas sagradas do templo e as queimaram (2Rs 10,18-19.24-26). 

           

Na aliança com a Fenícia, representada pela princesa Jezabel, o rei Acab instala em Samaria o templo de Baal, o Deus nacional da Fenícia (1Rs 16,29-34). Para derrubar a dinastia de Acab e tomar o poder, Jeú mata Jezabel e extermina os descendentes de Acab (2Rs 10,1-11). O fim da dinastia de Acab, com a destruição do templo de Baal, significa o fim da aliança Israel Norte com a Fenícia. Em contraposição, institui-se a dinastia de Jeú, apoiada pela Síria (FINKELSTEIN, 2015,109), o culto oficial a Javé.  A luta pelo poder transforma-se em luta de deuses: Javé, Baal, Aserá etc.

            Na história de Judá[4], o rei Ezequias promove o culto oficial a Javé, o Deus nacional, para justificar e fortalecer a centralização do culto em Jerusalém como centro religioso único, perseguindo outras manifestações religiosas:

 

Ezequias fez o que é correto dos olhos de Javé, seguindo em tudo a maneira de agir de seu pai Davi. Acabou com os lugares altos, quebrou as colunas sagradas e derrubou a Aserá. Despedaçou também a serpente de bronze que Moisés havia feito, por que os filhos de Israel ainda queimavam incenso dela. Eles a chamavam de Noestã (2Rs 18,3-4).

 

            Como a Aserá (coluna sagrada), a serpente era associada aos cultos de fertilidade. Os reis utilizavam essas divindades, populares entre os camponeses, para promover os interesses do Estado. Ao promover e escrever a reforma de Ezequias (2Rs 18,18-20), os redatores deuteronomistas, promotores da centralização do culto em nome de Javé, condenaram Aserá e a serpente como idolatria. Entretanto, o culto oficial a Javé, o Deus nacional, também era um meio de fortalecer o interesse do poder do Estado. Por exemplo, no mesmo período, Miqueias, profeta da aldeia, criticou, em nome do Javé popular, a religião do Javé nacional, promovida pelos sacerdotes e profetas da corte do rei Ezequias (Mq 2,6-11).  

            A reforma de Ezequias foi interrompida pela invasão da Assíria (701 a.C.). Com a morte de Ezequias, seu filho Manassés assumiu o poder em Judá (687-642 a.C.). Ao contrário de Ezequias, Manassés seguiu fiel à Assíra, introduzindo em Jerusalém o culto às divindades assírias: “exército do céu”.  Restabeleceu os cultos às divindades nos lugares altos, como Baal e Aserá, juntamente com Javé (2Rs 21,3).

            Os deuteronomistas condenaram Manassés como um dos piores reis de Judá por causa da sua infidelidade ao Javé oficial, apontada até como causa do exílio na Babilônia, mas a arqueologia indica que o reinado de Manassés foi um dos mais prósperos e pacíficos (KAEFER, 2015, 99-100). Vejamos os motivos desta prosperidade:

- Sendo leal a Assíria, Manassés conseguiu reinar por 45 anos num clima relativamente estável, o que incentivou o desenvolvimento de Judá: houve um grande aumento de assentamentos e do crescimento comercial.

- Com o restabelecimento dos cultos nos lugares altos (santuários), Manassés retomou as boas relações com os anciões das aldeias e seus sacerdotes dos santuários, ajudando a corte a promover a economia e o desenvolvimento do Estado.

 

Com a morte de Manassés e seu filho Amon (642-640 a,C,), Josias assumiu o trono (640-609 a.C.). Aproveitando o enfraquecimento da Assíria por causa da guerra contra a Babilônia, Josias retomou a política nacionalista de centralização e de Javé como o Deus nacional, iniciada por Ezequias, perseguindo e destruindo as divindades cultuadas no reinado de Manassés (KAEFER, 2015, 99-107):

 

O rei (Josias) mandou que o sumo sacerdote Helcias, os sacerdotes de segunda ordem e os guardas da porta tirassem do santuário de Javé todos os objetos feitos para o culto de Baal, de Aserá e de todo o exército dos céus. Os objetos foram queimados fora de Jerusalém, no vale do Cedron, e as cinzas foram levadas para Betel (2Rs 23,4).

 

            Com efeito, a eliminação do “exército dos céus” pode ser compreendida como uma declaração da política nacionalista e expansionista de Josias diante da Assíria. Mas a política nacionalista de centralização atingiu até a religiosidade popular dos camponeses:

 

Josias eliminou também os que evocam os mortos, os adivinhos, os deuses domésticos, os ídolos e todas as abominações que se viam na terra de Judá e em Jerusalém, para cumprir as palavras da Lei escritas no livro que o sacerdote Helcias encontrou na Casa de Javé (2Rs 23,24).

 

            Josias segue os mesmos princípios da reforma deuteronomista de Ezequias (o livro da lei, Dt 12-26[5]) e até radicalizou a centralização do culto a Javé, o Deus nacional, perseguindo a prática religiosa dos camponeses e destruindo objetos de culto a divindades como os deuses domésticos (terafins). O texto de Dt 13,7-12, relido e redigido no tempo de Josias, revela uma perseguição violenta (LUNDBOM, 2017,16-27).

 

2. A reforma de Josias atinge a religiosidade popular

 

            A centralização do culto a um único Deus, Javé, em Jerusalém provocou a destruição dos santuários do interior, concorrentes do templo de Jerusalém; a destruição dos objetos de culto às divindades; a morte ou destituição dos sacerdotes do interior, ou sua redução a uma categoria subalterna (2Rs 23,4-14). Toda essa violência teve motivo maior: apesar do caráter religioso da reforma, o objetivo do rei Josias era a centralização do poder socioeconômico para a sua política expansionista, que se manifestou, por exemplo, na invasão violenta do território israelita do Norte (2Rs 23,15).   

            A violência atingia até a casa e as relações familiares: “Se seu irmão, filho de seu pai ou de sua mãe, ou seu filho ou filha, ou a mulher que repousa em seu peito, ou um amigo que você quer como a si mesmo, tentarem seduzir você secretamente, convidando: ‘Vamos servir a outros deuses [...], não concorde, nem o escute. Que seu olho não tenha piedade dele, não use de compaixão, nem acoberte o erro dele. Pelo contrário, você deverá matá-lo” (Dt 13, 7-10a).

            “Seu irmão, filho de seu pai ou de sua mãe”: essa referência ao pai, o membro mais importante da família poligâmica refletia a vida da casa e as relações das famílias ampliadas da aldeia (CHRISTENSEN, 2001, 275-276). Até a família e casa se tornaram-se o alvo da reforma de Josias: o rei, por exemplo, impôs a festa da Páscoa no templo de Jerusalém (2Rs 23,21-13), até então acontecia nas casas e aldeias para celebrar e fortalecer as relações familiares de solidariedade e de convivência.

            “Vamos servir a outros deuses”: o texto não especifica os nomes de deuses. Podiam ser Baal, Aserá, deuses da fertilidade da terra, animais e mulheres, bem cultuados pelos camponeses na vida do dia a dia.  O algo da perseguição podia ser também os “deuses domésticos”, o deus do lar, que sacraliza os laços familiares da casa.

Evidentemente, a proibição do culto às divindades em casa, nas aldeias e nos santuários enfraqueceu a força e a resistência do interior, ao mesmo tempo fortalecendo o controle do Estado sobre o povo para executar a política expansionista e militar, que posteriormente levou Judá à destruição e ao exílio da Babilônia. Era a mesma política expansionista que é criticada por Jeremias, profeta dos camponeses, em nome do Javé popular (Jr 28).

“E para matá-lo, sua mão será a primeira. Em seguida, a mão de todo o povo. Apedreje-o até que morra (Dt 13,10-11a): o apedrejamento tinha dupla significação: por um lado, a pena permitia a execução coletiva; todos os membros da comunidade deviam sentir-se diretamente responsáveis pela execução da ordem; por outro, o apedrejamento, conforme a lei judaica, era aplicado àquilo que ia contra o sagrado, principalmente quando se tratava de “idolatria” (Dt 17,5), e o culpado se tornava intocável e devia ser morto, sem que nele encostassem (Ex 19,13).

“Servir a outros deuses”, portanto, era um sacrilégio e o culpado era rejeitado e morto pela comunidade, fortalecendo o controle do Estado sobre a vida cotidiana do povo. Os governantes amarravam e utilizavam as relações familiares da casa e da aldeia para impor Javé, o Deus nacional do templo de Jerusalém. A centralização do culto a serviço do poder alcançou sua função máxima e duradoura com a eliminação de qualquer infiltração de “teologia” de deuses na família e na casa, pela pena máxima de apedrejamento.

            A reforma de Josias utilizava ainda outro meio para fortalecer a centralização do culto: “Apedreje-o até que morra, pois tentou afastar você de Javé, o seu Deus, que o tirou do Egito, da casa da escravidão” (Dt 13,11), Em Dt 5-28, texto relido e ampliado no período de Josias, há várias menções sobre a tradição do êxodo – um total de 32. Além da argumentação das leis sociais, a tradição do êxodo era utilizada para justificar a imposição do Javé oficial, instituído pela corte de Josias:

·         “Cuidado consigo mesmo para não se esquecer de Javé, que o tirou do Egito, a casa da escravidão. É de Javé, o seu Deus, que você terá temor, a ele é que você servirá e pelo seu nome vai jurar” (Dt 6,12-13);

·         “Sigam a Javé, o Deus de vocês, e tenham temor a ele; observem seus mandamentos e obedeçam à sua voz; sirvam a ele e a ele se apeguem. Quanto ao profeta ou sonhador, deverá ser morto, porque propôs a rebelião contra Javé, o Deus de vocês, que tirou vocês do Egito e os resgatou da casa da escravidão, e porque procurou afastar você do caminho pelo qual Javé, o seu Deus, lhe havia mandado seguir” (Dt 13,5-6). A denominação “profeta ou sonhador” indica os sacerdotes que prestavam os cultos às divindades nos lugares altos, como Baal e Aserá, juntamente com Javé.

·         “Se você não colocar em prática todas as palavras desta lei escritas neste livro, alimentando o temor a este nome glorioso e terrível – Javé, o seu Deus – Javé ferirá você e sua descendência com pragas espantosas, pragas tremendas e persistentes, doenças graves e incuráveis. Ele voltará contra você as pragas do Egito, que o horrorizavam, e elas se grudarão em você” (Dt 28,58-60).   

 

Na tradição religiosa dos israelitas, o Deus do êxodo é uma divindade sensível ao sofrimento do povo oprimido, que escuta sua voz: “Javé disse: ‘Estou vendo muito bem a aflição do meu povo que está no Egito. Ouvi seu clamor diante de seus opressores, pois tomei conhecimento de seus sofrimentos. Desci para libertá-lo do poder dos egípcios’” (Ex 3,7-8a). A fé no Javé popular, Deus libertador, morava no coração dos camponeses e era invocado, muitas vezes, no sofrimento e nos momentos de crise existencial (cf. Sl 68,2-21).

No entanto, a reforma de Josias utilizou e apropriou-se justamente do Deus do êxodo para impor a centralização do culto em Jerusalém. Com a força da imposição, esse Deus do êxodo deixou de ser a divindade sensível à vida. Pelo contrário, passou a perseguir e matar quem não obedecia à ordem do Estado, instalando o terror e o medo: “Sabendo disso, todo o Israel ficará temeroso e nunca mais se fará em seu meio ação assim tão má (Dt 13,12).   

Atenção: “deuses que nem você nem seus pais conheceram, deuses dos povos que estão ao redor de você, próximos ou distantes de você, de uma extremidade à outra da terra” (Dt 13,7b-8): o texto é um acréscimo do pós-exílio, momento em que os teocratas expulsaram os estrangeiros em nome de Javé oficial, o Deus único, e condenaram suas religiões e culturas (cf. Ne 13,23-27).

 

 

3. Javé popular, sensível às injustiças, escuta as pessoas oprimidas

 

            Miqueias, um camponês profeta no período perturbado da reforma de Ezequias (716-701 a.C), viveu no meio do povo espoliado (Mq 3,1-3) e denunciou, em nome do Javé popular, as injustiças praticadas pelos dirigentes da corte: “Ouçam isto, chefes da casa de Jacó. Prestem atenção, governantes de Israel, vocês que têm horror ao direito e entortam tudo o que é reto, que constroem Sião com sangue e Jerusalém com perversidade. Os chefes de vocês proferem sentença a troca de suborno. Seus sacerdotes ensinam a troca de lucro e seus profetas dão oráculos por dinheiro” (Mq 3,9-11a).

            No entanto, os governantes contestavam as denúncias de Miqueias em nome do Javé oficial do templo de Jerusalém:

 

- “E ainda ousam apoiar-se em Javé, dizendo: ‘Por acaso, Javé não está no meio de nós? Nada de mau nos poderá acontecer!’” (Mq 3,11b);

- “Eles profetizam: ‘Não profetizem, não profetizem essas coisas! A desgraça não cairá sobre nós. Porventura a casa de Jacó foi amaldiçoada? Acabou a paciência de Javé? É isso que ele costuma fazer? Por acaso a promessa dele não é de benção para quem vive com retidão’” (Mq 2,6-7). 

 

A elite governante se vangloriava do Javé oficial do templo de Jerusalém, como fonte da graça e proteção, e insistia em sua conduta, conforme à aliança com esse Deus, e na legitimidade de ser o povo eleito e abençoado, que não sofrerá castigo algum. Javé oficial, instituído pela corte de Ezequias e fortalecido pela corte de Josias como Deus nacional de Israel, não era mais a divindade sensível às injustiças, que vê e escuta as pessoas oprimidas (MARQUES/NAKANOSE/Centro Bíblico Verbo, 2016, 48-51).

            Apesar da imposição do Javé oficial pela corte de Jerusalém, os profetas populares continuavam pregando o Deus dos pobres e oprimidos. O profeta Sofonias (640-620 a.C.), por exemplo, proclamava: “Procurem a Javé, como todos os pobres da terra que praticam o direito por ele estabelecido. Procurem a justiça, procurem a pobreza” (Sf 2,3); “Ai da rebelde, da manchada, da cidade opressora! Cidade que não escutou o chamado, que não aprendeu a lição. Ela não confiou em Javé, nem se aproximou do seu Deus. Seus oficiais são leões que rugem: seus juízes são lobos à tarde, que não comeram nada desde o amanhecer; seus profetas são uns fanfarrões, mestres de traição; seus sacerdotes profanam as coisas santas e violentam a Lei de Deus. Mas no meio dela está Javé, que é Justo, que não pratica a injustiça” (Sf 3,1-5).

As constantes críticas e exigências para uma política justa, apresentadas pelos profetas em nome do Javé popular, não evitaram o desastre nacional. Pela ambição pelo poder, os últimos reis de Judá, intrigados pelo Egito, executaram a política expansionista e provocaram as duas invasões da Babilônia, a destruição e o fim da realeza (587 a.C.).

Durante o tempo do exílio, a cidade de Jerusalém foi devastada; os governantes, massacrados; funcionários do templo, pequenos comerciantes, artesãos e agricultores foram levados como escravos para o exílio da Babilônia (2Rs 25,1-21): “Seu povo é um povo espoliado e roubado, todos presos em cavernas, trancados em prisões. Era saqueado, e ninguém o libertava. Despojado, e ninguém dizia: ‘Devolvam isso’” (Is 42,22).

A situação de abandono e de desolação: violência física e sexual, fome, sofrimento e desespero. Apesar disso tudo, a fé teimosa dos pobres oprimidos no Javé popular ressurgiu com o rosto do Deus Pai e Mãe, sensível às injustiças e aos sofrimentos do povo:

 

- “Não tenha medo, pois eu estou com você. Não precisa olhar com desconfiança, pois eu sou o seu Deus. Eu fortaleço você, eu o ajudo e o sustento com minha direita vitoriosa. [...] Não tenha medo, vermezinho Jacó, bichinho Israel. Eu mesmo o ajudarei – oráculo de Javé. Seu protetor é o Santo de Israel” (Is 41,10. 14);

- “Sião dizia: ‘Javé me abandonou, o Senhor me esqueceu!’ Mas pode a mãe se esquecer do seu nenê? Pode ela deixar de ter amor pelo filho de suas entranhas? Ainda que ela se esqueça, eu não me esquecerei de você. Veja! Eu tatuei você na palma da minha mão” (Is 49,14).    

 

O fim do exílio fez o povo sonhar de novo com uma sociedade de justiça e fraternidade, mas a história repetiu-se, como no tempo da monarquia. Após o exilo, o império Persa e seus súditos, como Neemias e Esdras, com o Deus oficial da teologia da retribuição baseada na lei do puro e do impuro, exploraram e oprimiram o povo através do templo, cobrando o sacrifico de purificação, o dízimo etc. Javé oficial do templo foi consolidado como Deus único, Criador do universo e Senhor da história.

Fora do templo, a elite dirigente cometia as injustiças: “Acontece que vocês, mesmo quando estão jejuando, só cuidam dos próprios interesses e continuam explorando quem trabalha para vocês. Vejam! Vocês jejuam entre rixas e discussões, golpeando sem piedade” (Is 58,3-4); “Muitos mudam os marcos da divisas, roubam os rebanhos e os levam a pastar. Levam embora o jumento que pertence ao órfão, e penhoram o boi que é da viúva [...] Arrancam o órfão do peito materno e penhoram quem é pobre. Da cidade sobem os gemidos dos moribundos e, suspirando, os feridos pedem socorro, e Deus não dá ouvido a essa infâmia” (Jó 24,2-3.9.12).

A última frase confirma que o Deus oficial do templo não escuta os gritos dos pobres oprimidos porque eles não têm condição de oferecer os sacrifícios de purificação e são “impuros”. Os pobres eram abandonados e oprimidos sem limite! Contudo, Javé popular não abandonava os pobres. Enquanto os governantes teocratas apresentavam esse deus oficial do templo, poderoso, ciumento e vingativo, para controlar e excluir os impuros – pobres, doentes, estrangeiros –, a fé teimosa no Javé popular continuava fazendo os pobres oprimidos afirmarem que Javé, o Deus sensível às injustiças e às violências, via, ouvia, conhecia os sofrimentos, tornando-se presença libertadora junto aos oprimidos:

 

- “Eu sei que o meu protetor está vivo e que no fim se levantará sobre o pó. E ainda que tenham cortado minha pele, na minha carne eu verei a Deus. Então, eu mesmo o verei! Meus olhos poderão vê-lo, e não um estranho. Meus rins se consomem dentro de mim” (Jó 19.25-27);

- “Escute-me, porque vou falar. Vou interrogá-lo, e você (Deus) me responderá. Eu te conhecia só de ouvido. Mas agora meus olhos te vêem. Por isso, eu tenho horror de mim e me arrendo sobre o pó e a cinza” (Jó 42,4-6). Jó, pobre oprimido, é “catequizado” pelos teocratas: Deus se manifesta só no santo dos santos do templo. Agora, pela experiência dura da vida cotidiana, ele percebe e experimenta que o Deus sensível à dor humana está no meio dos sofredores impuros;

- “Porque ele não desprezou a aflição do pobre, nem escondeu dele a sua face. Quando o pobre pediu auxílio, ele escutou” (Sl 22,25).

 

A teologia do Javé oficial e sua lei do puro e do impuro perpassaram a história, consolidaram-se e chegaram ao Sinédrio do tempo de Jesus. Fariseus pregavam a salvação pela estrita observância da lei do puro e do impuro e impunham o Deus poderoso, legalista e castigador a fim de incentivar o medo na população judaica, visando o controlo. Com a imposição do temor ao “sagrado” do templo de Jerusalém, proibiram até o uso do nome de Javé, designando-o como “Meu Senhor” (adonai em hebraico).

Porém, a fé no Javé popular não se apagou. Os pobres afirmavam que Javé, Deus libertador e misericordioso dos impuros, estava meio deles: “Eu te louvo. Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, assim foi do teu agrado” (Lc 10,21). Deus Pai dos pequenos! O Deus da vida não se encontra na observância legalista de normas, rituais e doutrinas dos "sábios” autossuficientes, mas no seguimento dos “pequenos” ao amor de Deus.

No movimento de Jesus de Nazaré, Deus continua sendo Deus paternal e maternal da gratuidade que escuta e acolhe as pessoas em situação de pobreza extrema, sem recursos e sem esperança, na Galileia: “Felizes vocês, os pobres, porque de vocês é o Reino de Deus. Felizes vocês, que agora têm fome, porque serão saciados. Felizes vocês, que agora choram, porque hão de sorrir” (Lc 6,20-21),

No seguimento de Jesus, a comunidade joanina destaca-se ao apresentar o Deus Pai do amor no mundo em que o império romano utilizava a religião imperial, com o culto ao imperador divinizado e seus deuses poderosos, para impor e legitimar o poder e a dominação (NAKANOSE/MARQUES/CENTRO BÍBLICO VERBO, 2019, 116-129):

 

- “Eu sou o bom pastor: conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai, e exponho a minha vida pelas ovelhas” (Jo 10,14-15);

- “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará. Eu e meu Pai viremos e faremos nele nossa morada” (Jo 14,23);                    

- “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor. Nisto se tornou visível o amor de Deus entre nós: Deus enviou o seu Filho único ao mundo, para podermos viver por meio dele” (1Jo 4,8-9).  

 

É preciso que estejamos sempre dispostos e dispostas a renovar nossa aliança com o Deus “popular”, sensível às injustiças, que escuta as pessoas oprimidas e caminha com elas porque “Deus é amor”. Que a fé no Deus da vida, vivenciada pelo amor e pela justiça, fortaleça e anime a nossa caminhada para que todos tenham a vida, sobretudo no Brasil, que já soma 13,5 milhões de miseráveis que sobrevivem com 145 reais mensais.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

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[2] Sobre a origem de Javé, cf. RÖMER, Thomas. A origem de Javé: o Deus de Israel e seu nome. São Paulo: Paulus, 2014; SMITH, Mark S. “YHWH´s Original Character: Questions about an Unknown God”. In: VAN OORSHOT, Jürgen/WITTE Markus (org.). The Origins of Yahwism. Berlin/Boston: De Gruyter, 2019, pp. 23-43.

[3] Sobre a história de Israel Norte, cf. LIPINSKI, Edward. A history of the Kingdom of Israel. Leuven: Peeters, 2018, pp. 33-128

[4] A arqueologia comprova um grande desenvolvimento em Judá, tanto na capital Jerusalém quanto no interior, a partir de 722 a.C. Sobre os dados arqueológicos, cf. DEVER,William G. Beyond the Texts:  an Archaeological Portrait of Ancient Israel and Judah. Atlanta: SBL Press. 2017, pp. 547-627.

[5] Para a introdução literária, sociológica e histórica do livro do Deuteronômio, nos livros em português, cf. RÖMER, Thomas, A chamada Histórica Deuteronomista. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008; GALVAGNO, Germano/GIUNYOLI, Federico. Pentateuco. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020.

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