“Não
explore o assalariado necessitado e pobre”
Uma
leitura de Dt 24,10-22
Shigeyuki Nakanose
Maria Antônia Marques
Centro Bíblico Verbo
Lemos no jornal Folha de São Paulo a respeito da situação de Jadilson
Morais da Silva, 25, “o jantar na minha casa hoje serão quatro ovos que restaram, que
serão repartidos entre cinco pessoas. O que mata a fome do meu filho é a
creche. Aqui em casa não tem nada para dar para ele. Passo fome, às vezes, sim.
Fico o dia todo sem comer nada. Comemos porque meu irmão às vezes ganha uma
cesta na igreja, algum vizinho ajuda, a gente recebe uma caixinha de leite”,
diz ele.
A única renda da casa hoje é a pensão que a mãe de Jadilson recebe, de
R$ 1.500. O problema é que R$ 300 estão comprometidos logo de cara, com as prestações
de um empréstimo que pagou para enterrar o marido. Outros R$ 650 vão para o
aluguel (que aumentou recentemente). As outras contas passam de R$ 100. Jadilson
já trabalhou em metalúrgica, lava-rápido e transportadora, mas ficou
desempregado. Na última segunda-feira, 15, conseguiu um emprego numa loja de
pipas, em que espera ganhar cerca de R$ 800 por mês, se sua produção for boa.
“A gente tinha R$ 900 em conta
atrasada, e iam cortar nossa luz. Mas o pessoal do emprego do meu irmão fez uma
vaquinha para pagar”, conta. “O que salvou essa semana foi a comprinha que uns
jornalistas fizeram para ajudar, pagaram até a fralda do meu filho.”[1]
Em
meio à realidade de sofrimento, Jadilson e sua família experimentam a
solidariedade de vizinhos e pessoas amigas. O Antigo Testamento também registra
a solidariedade e as leis sociais em favor dos pobres e necessitados, como:
“Não explore o assalariado necessitado e pobre, seja ele um de seus irmãos,
seja um imigrante que vive em sua terra, nas portas de sua cidade” (Dt 24,11).
Diante da realidade sofrida do Brasil, na qual os pobres continuam sendo
explorados, podemos nos perguntar: quais as leis sociais constituídas em favor
dos necessitados, na Bíblia?
1. As leis sociais em favor da vida
Israel nasceu, como povo e nação, de uma
confederação de tribos na região montanhosa de Canaã, por volta de 1200 a.C.
Entre os anos 1200 e 1000 a.C., a população dessa região passou de 12 mil para
75 mil pessoas, e os locais povoados (sítios ou pequenas aldeias) passaram de
29 para 254. Na região de Betel e Siquém, por exemplo, formaram-se as tribos de
Benjamim, Efraim e Manassés. Formou-se uma sociedade tribal oposta à monarquia
centralizada cujo poder estava concentrado nas mãos de um rei, uma liderança
vitalícia.
A tribo, formada por um grupo de clãs (as
famílias ampliadas) que tinham um mesmo ancestral, era marcada pelas relações
de parentesco, de solidariedade, hospitalidade e apoio mútuo em defesa da vida.
Com a sociedade tribal, os primeiros israelitas, que tinham mentes e corpos
marcados pela estrutura opressora das cidades-estado e do Império Egípcio,
tentaram eliminar a desigualdade e construir a sociedade sem concentração de
riqueza e poder.
Na vida cotidiana das aldeias
“comunitárias”, o espírito de apoio mútuo e de partilha transparecia nas leis
sociais antigas: “Quando você entrar no pomar do seu próximo, pode comer à
vontade, até ficar satisfeito, mas não pode carregar nada no cesto. E quando
entrar na plantação do seu próximo, pode apanhar espigas com a mão, mas não
passar a foice na plantação do seu próximo” (Dt 23,25-26).
Contudo, não teria sido pacífica a
manutenção da organização social de igualdade e solidariedade entre 1200 e 1000
a.C., cerca de duzentos anos. Houve vários fatores internos e externos que
atormentaram e ameaçaram a vida dos israelitas: a chegada constante de novos
migrantes, forasteiros, estrangeiros e pobres nas regiões montanhosas, as
guerras provocadas pelas invasões dos reis cananeus, a seca prolongada, as
doenças, as disputas entre os clãs etc. Tudo isso provocou a morte, o
empobrecimento e a desigualdade. A Bíblia preserva várias leis sociais para
impedir as desigualdades sociais no período tribal, eis algumas:
a) “Não
explore o migrante nem o oprima, porque vocês foram migrantes no Egito. Não
maltrate a viúva nem o órfão, porque, se você os maltratar e eles clamarem a
mim, eu escutarei o clamor deles” (Ex 22,20-22). A lei protege os novos
migrantes nas aldeias camponesas, nas montanhas, e viúvas e órfãos que perdiam os
chefes das famílias por guerras e doenças; garantia também os direitos aos
necessitados e assegurava a convivência das aldeias.
b)
“A terra não poderá ser vendida para sempre,
porque a terra pertence a mim, e vocês são para mim migrantes e hóspedes
temporários. Por isso, de qualquer terra que vocês possuírem, concedam o
direito de resgate da terra. Se um irmão seu cai na miséria e precisa vender
algo de sua propriedade, o parente mais próximo dele (o go'el), que tem o
direito de resgate, irá até ele e resgatará aquilo que o irmão tiver vendido”
(Lv 25,23-25). Segundo a tradição de Israel, o êxodo, com a libertação e a
terra prometida, é ação salvífica de Deus. A terra é “dom” de Deus e “herança”
para todo o povo, de modo que todas as famílias possam viver dela (Nm
26,52-56). Se alguém, por circunstâncias diversas, for obrigado a vender sua
terra, seu protetor, o go'el, terá
direito de resgatá-la: a lei do goelato. É a lei que impede o acúmulo de terra
e evita o surgimento de desigualdades sociais.
c)
“Quando irmãos habitam juntos e um deles morre
sem deixar filhos, a viúva não deve sair para casar-se com um estranho. Um
cunhado dela vai se achegar a ela e tomá-la como mulher, cumprindo o dever de
cunhado. O primeiro filho que nascer receberá o nome do irmão falecido, para
que o nome dele não se apague em Israel” (Dt 25,5-6; cf. Gn 38,1-30). É a lei
do levirato (levir = “cunhado”), que
visa assegurar um lar para a viúva e suas
crianças e conservar a herança (terra e casa) no âmbito familiar.
d) “Se
um boi chifrar um homem ou mulher e lhe causar a morte, o boi será apedrejado,
e ninguém comerá da sua carne. O dono do boi ficará sem castigo. Se o boi
chifrava antes e o dono tinha sido avisado e não o prendeu, o boi será
apedrejado e seu dono será morto. Se lhe for exigido resgate, então pagará o
que exigirem dele em troca de sua vida” (Ex 21,28-30). O boi com o arado na
lavoura foi introduzido em Israel por volta de 1050 a.C., aumentando a
produção. Era necessário controlar os donos de bois que acumulavam a
propriedade, a terra e o poder, em detrimento das outras famílias.
Estas leis foram escritas em épocas mais
tardias, mas preservam a tradição social do período tribal: solidariedade e
igualdade. Entretanto, o surgimento da monarquia em Israel – de modo especial em
Israel Norte – levou a uma elaboração acelerada de leis sociais que garantissem
o direito de todos na defesa e na preservação da vida.
A monarquia concentrava os poderes. O rei
assegurava as arrecadações de taxas, tributos e pedágios através do palácio e
do exército para a mordomia da elite dirigente (Am 6,1-6). Os santuários do rei
alienavam e atraíam os fiéis para a religião oficial, espoliando-os com os
sacrifícios e as ofertas (Am 5,21-24). E, com o comércio injusto e o tribunal
corrupto, a elite explorava os camponeses: “Eles odeiam aqueles que se defendem
na porta e têm horror de quem fala a verdade. Porque esmagam o fraco, cobrando
dele o imposto do trigo. [...] Pois eu sei como são numerosos seus crimes e
graves seus pecados: exploram o justo, aceitam subornos e enganam os
necessitados: junto à porta!”, denuncia o profeta Amós (Am 5,10-12).
Registram-se, nesse período, as leis sociais
com a origem profético-popular que protegem o direito dos pobres: “Você não
deve torcer o direito do pobre em seu processo. Fuja da acusação falsa. Não faça
morrer o inocente, o justo, nem deixe sem castigo o criminoso. Não aceite
propina, porque a propina cega quem tem olhos abertos e torce até as palavras
dos justos. Não oprima o migrante. Vocês conhecem a vida do migrante, porque
foram migrantes no Egito” (Ex 23,6-9).
Em 722 a.C., Samaria, capital do
Israel Norte, foi conquistada pelo rei assírio Salmanasar V (726-722 a.C.), e
destruída por Sargão II (721-705 a.C.). Uma parte da população de Israel Norte
foi deportada (2Rs 17,6). O número dos deportados chegou a 27.920, segundo os
anais assírios e as populações estrangeiras se instalaram no antigo reino
desaparecido: “O rei da Assíria mandou vir gente de Babilônia, de Cuta, Ava,
Emat e Sefarvaim, e os estabeleceu nas cidades de Samaria, em lugar dos filhos
de Israel. Tomaram posse de Samaria e se instalaram em suas cidades” (2Rs
17,24). Foi um grande fluxo populacional de deportados.
O fenômeno do fluxo populacional também é
provocado pelos refugiados da guerra. A invasão e a conquista de uma região
causam grande desastre e sofrimento: cidades destruídas, aldeias incendiadas,
colheitas e gado saqueados, plantações e árvores frutíferas queimadas,
habitantes massacrados e deportados, provocando uma grande fuga de refugiados:
“migrantes, viúvas e órfãos”. Foi o caso dos refugiados de Israel Norte para
Judá, na ocasião da queda de Samaria.
A arqueologia documenta um dramático
crescimento demográfico em Judá: a população de Jerusalém aumentou de mil
habitantes para quinze entre 722 e 701 a.C. No mesmo período, o número de
assentamento nas colinas centrais de Judá passou de 35 para 120. Na Sefelá, uma
estreita faixa de terra fértil entre as montanhas e a planície, houve
crescimento estimado de 20 para 275. Um contingente de refugiados foi deslocado
para Judá num período muito curto de tempo. Foi uma grave crise de explosão
demográfica!
Em 716 a.C.,
Ezequias sobe ao trono de Judá, nação afetada pela destruição do seu vizinho
Israel Norte, e iniciou a chamada “reforma de Ezequias ou “deuteronomista” para
enfrentar a crise. Como orientação da reforma, o grupo de escribas
deuteronomistas escreveu o núcleo de Dt 12-26 que contêm as leis sociais para
amenizar o grande fluxo de refugiados, envolvendo os grupos sociais de
estrangeiro, órfão e viúva (Dt 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21).
2. As leis sociais em Dt
24,10-24
A
arqueologia comprova um grande desenvolvimento em Judá, tanto na capital
Jerusalém quanto no interior, a partir de 722 a.C., período da destruição de
Samaria pela Assíria e dos refugiados do norte para o sul. A população de
Jerusalém aumenta de mil para quinze mil habitantes. A capital foi ampliada de
cinco para sessenta hectares. No interior, atesta-se o grande aumento de
assentamentos e de produção agrícola, sobretudo de azeite (oliveiras) com
melhores prensas.
Para enfrentar a grave crise populacional e o
avanço da Assíria, o rei Ezequias executou várias obras: novos bairros,
chamados de cidade nova (2Rs 22,14; Sf 1,10-11); o túnel subterrâneo de 513
metros, escavado na pedra para levar água para a cidade nova; o reforço das
cidades-fortaleza, como Laquis etc. As obras empregavam e absorviam muitos
refugiados em trabalho penoso, semelhante ao dos escravos.
Há famílias de israelitas abastadas
no meio dos refugiados. Mas agora a maioria trabalhava nas obras e vivia de
“diária”, e, às vezes, era forçada a pedir empréstimos para sobreviver,
sobretudo nas cidades. Aconteciam, portanto, com muita frequência a injustiça,
o abuso e a violência em juros, penhora e cobrança: “Que direito têm vocês de
oprimir meu povo e esmagar a face dos pobres?” (Is 3,15).
Era necessário proteger o direito
dos pobres devedores: “Quando você fizer algum empréstimo a seu próximo, não
entre na casa dele para pegar alguma coisa como penhor. Fique do lado de fora;
o homem a quem você fez o empréstimo, ele é que deve sair para lhe trazer o
penhor” (Dt 24,10-11). O credor não tinha o direito de invadir a propriedade do
devedor, nem de humilhá-lo.
Aliás, a penhora em si era um meio
de pressionar e explorar o pagamento de uma dívida. A cobrança da penhora às
vezes atingiu a uma pessoa ou família pobre em sua necessidade de
sobrevivência: por isso, o Dt alerta: “Se ele for necessitado, você não irá
dormir sobre o penhor dele. Ao pôr do sol você deve devolver sem falta o
penhor, para que ele durma com o manto dele e abençoe você. Quanto a você, isso
será um ato de justiça diante de Javé, o seu Deus (Dt 24,12-13). O pobre
devedor tem só um manto que lhe serve como roupa de cama: tirá-lo seria um ato
de humilhação e de crueldade.
Ainda o Dt toca no dia a dia dos
refugiados recrutados nas obras: “Não explore o assalariado necessitado e
pobre, seja ele um de seus irmãos, seja um migrante que vive em sua terra, nas
portas de sua cidade. Pague-lhe a diária todos os dias, antes do pôr do sol,
porque ele é um necessitado, e a vida dele depende disso. Assim ele não clamará
a Javé contra você, e em você não haverá pecado” (Dt 24,14-15). No mundo
comercial e monetário de uma cidade, a diária é o meio essencial de
sobrevivência para um migrante (refugiado ou forasteiro), que não conta com o
apoio de parentesco – do clã. O pobre tem o direito de comer e viver a vida como
gratuidade de Deus.
Agora, é notável em Dt 24,10-22 um
acréscimo exílico ou pós-exílico referente à teologia da responsabilidade individual:
“Os pais não serão mortos pela culpa dos filhos, nem os filhos pela culpa dos
pais. Cada um será executado por causa do seu próprio crime” (Dt 24,16). Ao
lado da noção de responsabilidade coletiva (Gn 18,23-33; Dt 5,9), que une
solidariamente os membros de uma comunidade entre si e com os antepassados, desenvolve-se
a idéia de responsabilidade individual na situação dos desterrados depois da
catástrofe (Dt 7,10; Ez 18,1-32; Jr 31,29-30). A cada indivíduo é exigido ter
mais consciência da realidade e começar a ação de superar a crise.
Após o acréscimo, a segunda parte
das leis sociais concentra-se no trio: pobre, indefeso e explorado: “Não
distorça o direito do migrante e do órfão, nem tome como penhor a roupa da
viúva. Lembre-se; você foi servo no Egito e daí Javé, o seu Deus, o resgatou. É
por isso que eu o mando agir desse modo” (Dt 24,17-18). A aliança com o Deus
libertador do êxodo é aplicada na prática da justiça para com os pobres e
fracos: “Estou vendo muito bem a aflição do meu povo que está no Egito. Ouvi
seu clamor diante de seus opressores, pois tomei conhecimento de seus
sofrimentos. Desci para libertá-lo do poder dos egípcios e fazê-lo subir dessa
terra para a terra fértil e espaçosa” (Ex 3,7-8a).
No mundo do Antigo Testamento, a situação de
risco do migrante, órfão e viúva estava diretamente ligada à terra como o meio
principal de onde a pessoa tira o necessário para sustentar a vida. No caso da
viúva na comunidade, a lei do levirato obrigava o irmão (o parente mais
próximo) a unir-se à viúva, e o filho que nascesse seria considerado como filho
do irmão morto para conservar a herança (terra e casa) no âmbito da família e
do clã, junto com a viúva e o herdeiro. Neste caso, o herdeiro não se chama
órfão.
Contudo, no contexto de Dt 24,17-22, a viúva
e o órfão, como o migrante, eram os grupos ficaram sem a proteção da família e
do clã com a destruição de Israel Norte. Eram os refugiados de guerra sem
acesso à terra. Não tinham meios para trabalhar e obter sustento e bem-estar. A
viúva e o órfão nem teriam condições de serem empregados nas obras como
diaristas. Era necessário fortalecer as leis sociais para proteger e fazer
justiça aos pobres e fracos.
Na defesa dos desprotegidos, o Dt retoma o
antigo costume dos camponeses na colheita que deixavam para trás produtos para
os pobres como oferta para a divindade de fertilidade da terra: “Quando você
estiver fazendo a colheita em sua plantação e deixar para trás um feixe, não
volte para pegá-lo: fica para o migrante, o órfão e a viúva. Desse modo Javé, o
seu Deus, há de abençoar você em todo o trabalho de suas mãos” (Dt 24,19).
Essa providência quanto à
alimentação dos menos privilegiados é lembrada ao longo da história de Israel
pela tradição popular, bem exemplificada no livro de Rute: “A moça é uma
moabita, que voltou com Noemi dos Campos de Moab, me pediu para catar o
restolho das espigas atrás dos cortadores. Ela chegou e ficou aqui desde cedo
até agora, sem parar um só momento” (Rt 2,6-7). Rute, pobre e viúva
estrangeira, com a viúva Noemi, tinha o
direito de recolher o restolho de trigos (cf. Lv 19,9; 23,22).
Ainda o Dt amplia a espécie de
restolho: “Quando você sacudir as azeitonas da sua oliveira, não volte para
bater os ramos: o que sobrou será para o migrante, o órfão e a viúva. Quando
você colher as uvas da sua vinha, não volte para colher o que ficou: a sobra
será para o migrante, o órfão e a viúva. Lembre-se: você também foi servo no
Egito. É por isso que eu o mando agir desse modo” (Dt 24,20-22).
Quanto à oliveira, a arqueologia comprova
um grande aumento na produção de azeite em Judá, a partir da queda de Samaria,
em 722 a.C. A região de maior produção foi Sefelá, com as grandes cidades, como
Azeca e Laquis. A última era conhecida como uma área onde se produzia muita
oliva; era o centro da coleta do tributo assírio. Provavelmente, muitos
refugiados do norte que foram para o sul passam a viver na região da Sefelá,
que registrou, no reinado de Ezequias, um grande aumento de assentamentos e de
produção agrícola, como cereais, vinhas e oliveira.
Ao mesmo tempo, a região passava por
grandes conflitos da terra, e o povo sofria: “Ai daqueles que, deitados na
cama, ficam planejando a injustiça e tramando o mal! É só o dia amanhecer, já o
executam, porque têm o poder nas mãos. Cobiçam campos, e os roubam; querem uma
casa, e a tomam. Assim oprimem ao varão e à sua casa, ao homem e à sua herança”
(Mq 2,1-2), grita Miqueias, camponês originário de Morasti, perto da cidade de
Gat, a região de Sefelá, no período de 725-701 a.C. Havia muita violência e
espoliação no campo.
Após a destruição de Israel
Norte, houve um grande desenvolvimento econômico em Jerusalém e no interior de
Judá. Porém, por trás da prosperidade, o país passava por uma grave crise: o
jugo pesado da Assíria e sua ameaça; a violência provocada pela elite agrária a
fim de obter mais lucro e poder; a presença do grande número de refugiados, muitos
deles estrangeiros, órfãos e viúvas etc.
A lei social em favor dos
pobres foi um dos procedimentos do governo de Ezequias diante dessa crise
social. Era o meio mais importante para a subsistência dos sem-terra e da
coesão social de Judá, nação que estava se preparando para a guerra contra a
Assíria (2Rs 18,1-8).
3. As leis sociais do
movimento cristão
Pai, santificado seja teu nome; venha
teu Reino; o pão nosso cotidiano dá-nos a cada dia; perdoa-nos os nossos
pecados, pois nós também perdoamos aos nossos devedores; e não nos deixes cair
na tentação (Lc 11,2-4).
“Perdoamos aos nossos devedores”, aconselha o
Pai-nosso de Jesus de Nazaré, que está no Evangelho Q composto durante a década
de 40 d.C., na região ao redor do lago de Genesaré ou Galileia. O cenário da
Galileia era de endividamento, doença e escravidão. Uma das causas de
endividamento era o empréstimo com juros abusivos, sobretudo para o pagamento
de impostos. Herodes Antipas (4 a.C. a 39 d.C.), tetrarca da Galileia, chegava
a receber em torno de 200 talentos por ano, valor equivalente a 1.200.000
denários, referentes ao imposto da pesca.
Ao contrário da economia de ganho que produzia
o endividamento, a fala de Jesus de Nazaré propõe a economia da partilha e da
solidariedade, seguindo às leis sociais do antigo Israel:
·
“Quando no seu meio houver um pobre, mesmo
que seja um só de seus irmãos, numa só das portas de suas cidades, na terra que
Javé, o seu Deus, dará a você, não endureça o coração, nem feche a mão para
esse irmão pobre. Pelo contrário, abra a mão e empreste o que está faltando
para ele, na medida em que o necessitar” (Dt 15,7-8);
·
“O ímpio pede emprestado e não devolve, mas o
justo mostra bondade e faz doação” (Sl 37,21; cf. Ex 22,25; Sl 112,5; Dt 23,20;
Rm 13,8; Mt 18,23-35).
Com a tradição do Antigo Testamento, Jesus,
formado na tradição profética e sapiencial da aldeia Nazaré, na Galileia,
proclamava a solidariedade com os empobrecidos: "Perdoamos aos nossos
devedores". O reino de Deus pregado por Jesus é aquele no qual o poder e a
riqueza são repartidos de modo que não haja oprimidos e pobres.
Os seguidores de Jesus de Nazaré praticavam a
mesma sensibilidade do mestre, baseada na solidariedade e na crítica contra o
abuso e a injustiça no mundo do império romano:
a) Tribunal:
“Ora, quando vocês têm processos desta vida para serem julgados, como é que
tomam como juízes aqueles que a igreja não considera? Digo isso para que vocês
se envergonhem. Será que não existe entre vocês alguém experiente, que consiga
resolver uma questão entre irmãos? Ao contrário, um irmão é chamado ao tribunal
contra seu próprio irmão, e isso diante de infiéis” (1Cor 6,4-6): No processo
judicial do Império Romano, a posição social
e o privilégio legal eram usados contra os inferiores. O suborno judicial era
comum, e os préstimos dos jurados não ficavam sem recompensa. Nesse mundo
injusto, Paulo alertava e condenava o fato de cristãos recorrerem a tribunais
civis para dirimir os conflitos dentro da comunidade, como ato de defraudar e
abusar dos irmãos. As questões devem ser julgadas com o sentido cristão da
caridade, no seio da própria comunidade (cf. Am 5,10-11; Rm 12,14-21).
b)
Escravos:
“Quem sabe ele (Onésimo) não tenha sido afastado de você (Filêmon) por um
tempo, para que você o tivesse de volta para sempre. Não mais como escravo, e
sim muito mais do que escravo, como irmão amado, especialmente por mim e tanto
mais por você, segundo a carne e segundo o Senhor” (Fm 15-16). Cerca de dois
terços da população das cidades greco-romanas eram escravos. Eles sofriam com a
miséria, a fome e a insegurança, tinham média de vida de pouco mais de vinte
anos, enquanto os ricos viviam cerca de quarenta anos. Eram pessoas massacradas
e engolidas pela sociedade escravagista. Paulo apelava ao patrão, Filêmon, que recebesse
seu escravo Onésimo como irmão. Foi tanto um desafio quanto uma crítica à
sociedade escravagista, na qual a lei romana previa penas severas para os
escravos fugitivos. Segundo a lei cristã, todos são irmãos e têm os mesmos
direitos e deveres em Jesus Cristo (cf. Jó 31,13; Gl 3,28).
c)
Pobres:
“Escutem, meus queridos irmãos: Não foi Deus quem escolheu os pobres de bens
neste mundo para que fossem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos
que o amam? No entanto, vocês desprezaram o pobre. Não são os ricos que oprimem
vocês e os arrastam aos tribunais? Não são eles que blasfemam contra o Nome
sublime que foi invocado sobre vocês? Se vocês, ao contrário, observarem a Lei
do Reino, segundo está escrito: ‘Amem seu próximo como a si mesmo’, estão
agindo bem” (Tg 2,5-8). A carta de Tiago descreve as graves injustiças sociais
praticadas pelos ricos que se enriquecem à custa de trabalhadores em sua busca
desenfreada pelo lucro (Tg 5,6). Apresentando o Deus dos pobres, a carta
condena a discriminação e a opressão praticadas pelos ricos contra os pobres e
orienta os fieis a praticarem a lei do reino: o amor ao próximo (cf. Is 61,1-2;
2Cor 8,9).
d) Migrantes, forasteiros e estrangeiros:
“De Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos que vivem espalhados como estrangeiros
(forasteiros) no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia. Vocês foram
escolhidos pelo desígnio de Deus Pai, pela santificação do Espírito, para obedecerem
a Jesus Cristo e serem aspergidos com seu sangue. Que a graça e a paz sejam
concedidas a vocês em abundância” (1Pd 1,1-2). A primeira carta de Pedro,
escrita na Ásia Menor, no final do século I, descreve a presença de grande
número de estrangeiros e forasteiros que eram forçados a sair de suas terras
por causa de guerras e empobrecimento, causados pela ambição e sede de poder e
lucro (1Pd 2,11-12). Pelo batismo de Jesus Cristo, crucificado por causa da prática
da justiça, os cristãos são chamados a viver como irmãos e irmãs, no amor ao
próximo. Na comunidade cristã não há lugar para divisões, preconceitos e
separação. Ela deve acolher, em seu meio, os forasteiros e injustiçadas de
ontem e hoje (cf. Is 58,6-7; Mt 25,35-36)
O aconselhamento e a prática do movimento
cristão para as questões sociais nos remetem para o mundo da sabedoria judaica,
baseada na tradição profético-popular, que ensina como viver segundo a Palavra
do Deus da Vida, diante dos desafios da sociedade: violência, discriminação,
exploração, corrupção, miséria, fome, morte etc.: “Não explore o fraco por seu
fraco, nem oprima o pobre no tribunal (Pr 22,22).
No caminho de Jesus de Nazaré, a opção de
Deus pelos pobres aparece mais clara quando assumida conscientemente pelos
cristãos que professam a fé em Jesus Cristo, o “Verbo encarnado”, que viveu
amando e servindo ao próximo (1Jo 3,1-4,6): “Felizes vocês, os pobres, porque
de vocês é o Reino de Deus. Felizes vocês, que agora têm fome, porque serão
saciados. Felizes vocês, que agora choram, porque hão de sorrir” (Lc
6,20-21).
Uma palavra final
“Lembre-se: você foi servo no Egito e daí
Javé, o seu Deus, o resgatou. É por isso que eu o mando agir desse modo” (Dt
24,18). Fazer memória da ação libertadora de Deus em nossa vida pessoal e
comunitária nos ajuda a sermos solidárias e solidários com as pessoas que
sofrem. Deus nos chama e nos envia para construirmos uma sociedade na qual as
pessoas tenham seus direitos garantidos.
a) Quem
são hoje o órfão, a viúva e o estrangeiro, e o que nós fazemos para que essas pessoas
tenham condições de vida digna?
b) Como
o nosso agir colabora para a construção de uma sociedade justa?