quarta-feira, 3 de novembro de 2021

 

Sumário:

1. Livro do Deuteronômio: Introdução 

2. "Não explore o assalariado necessitado e pobre". Uma leitura de Dt 24,10-22 

3. Um Deus ciumento e vingativo. Uma leitura de Dt 13,7-12 

4. O evangelho de Jesus Cristo crucificado: "É para a liberdade que Cristo nos libertou" (Gl 5,1)

5. O evangelho de Jesus Cristo crucificado. Uma leitura de Gl 2,11-21 

6. Uma reflexão sobre o Pai-Nosso (Mt 6,7-15)




UMA REFLEXÃO SOBRE O PAI-NOSSO (Mt 6,7-15)


Maria Antônia Marques

Shigeyuki Nakanose, svd

Centro Bíblico Verbo


O Pai-nosso é a oração que Jesus ensinou a seus discípulos; ela contém a síntese do projeto de Jesus. A oração é dirigida ao Pai: “Pai nosso que estás nos céus”. Aqui, podemos observar dois elementos fundamentais: em primeiro lugar reforça a filiação com Deus e a irmandade, a fraternidade solidária. Se não vivemos a fraternidade, se não vivemos como irmãs e irmãos, a oração do Pai-nosso em nossos lábios é mentirosa. A oração não é dirigida ao imperador ou a outra divindade, mas ao Deus criador.

            Muitos povos invocaram a Deus como “pai” ou “mãe”. Essa expressão indica relação de proximidade, confiança e respeito. Chamar a Deus de pai é reconhecer que ele é a fonte da vida e o Senhor. Na experiência do povo de Israel, a concepção de Deus como pai nasce junto com a compreensão de povo eleito, após o exílio da Babilônia: “Com efeito, tu és nosso pai. Ainda que Abraão não nos reconhecesse e Israel não tomasse conhecimento de nós, tu, Javé, és nosso pai, nosso redentor: tal é teu nome desde a antiguidade” (Is 63,16; cf. Is 64,7). Deus é visto como um pai amoroso que sempre esteve presente na história do seu povo.

            No Antigo Testamento, o título de pai para Deus era um título entre outros. Em Jesus é que vamos entender o que significa chamar a Deus de pai. Ao falar com Deus, Jesus o chama de Abba, um termo carinhoso usado pelas crianças para dirigir-se a seu pai. Chamar a Deus de papai ou de paizinho implica relação de intimidade, confiança, afeto, ternura. Ao ensinar a oração do Pai-nosso, Jesus quer que seus discípulos e discípulas desenvolvam a mesma relação de intimidade com Deus. Nos escritos de Paulo, lemos: “não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai!” (Rm 8,15). Quando rezamos o Pai-nosso deixamos aflorar em nosso ser o espírito de filhos e filhas de Deus?

            Em seguida, de maneira direta, temos os pedidos: “Santificado seja o teu nome, venha o teu Reino, seja feita a tua vontade” (6,9b-10). Estes pedidos estão voltados para Deus: nome, reino e vontade. O nome de Deus só será santificado quando houver condições dignas de vida, e quando vivermos na justiça, na fraternidade e na solidariedade. Na cultura judaica, o nome de uma pessoa ou de um objeto expressa o seu próprio ser. Santificar o nome de Deus é reconhecer a sua presença como um Deus amigo, amoroso e fiel. O nome de Deus continua sendo desprezado toda vez que seus filhos e filhas são explorados e injustiçados. Para que o nome de Deus seja glorificado é preciso que vivamos como irmãs e irmãos.

“Venha o teu Reino” é o desejo de que o reino de Deus se torne realidade entre nós. Um reino de justiça, paz e segurança. O reino de Deus ultrapassa as paredes da Igreja, ele está presente em todos os lugares onde reina o amor e a justiça. A chegada do reino de Deus é uma boa notícia para os pobres (5,3), as principais vítimas do sistema. O reino de Deus só se realizará quando cada pessoa que assume o projeto de Jesus estiver disposta a viver a justiça: “Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (6,33). É preciso arregaçar as mangas e trabalhar na construção de um mundo fraterno e solidário.

Qual é a vontade de Deus? Acreditamos que Deus é o Deus da vida e a sua vontade só pode ser vida em plenitude para o ser humano, para todos os seres e formas de vida. Com este pedido nos predispomos a escutar e acolher a vontade de Deus. O importante não é o nosso anseio ou o nosso desejo, mas abrir-se à vontade do Pai, o que não significa também anular a nossa vontade, mas orientar nossas disposições para o bem. Que a vontade de Deus atinja a totalidade do universo: “na terra como no céu!” (6,10).

Manter-se firme na vontade do Pai não é fácil. Exige coerência e constante renovação do compromisso com a causa da justiça. Esse projeto só se realiza quando há entrega: “Meu Pai, se não é possível que esta taça passe sem que eu a beba, seja feita a tua vontade” (26,42). Cumprir a vontade do Pai nos congrega na família de Jesus: “Aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos Céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (12,50).

Após os três pedidos relacionados a Deus, a oração volta a sua atenção para as necessidades cotidianas: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”, “perdoa-nos as nossas dívidas”, “não nos submeta à tentação”, “livra-nos do Maligno” (6,11-13). O pedido do pão de cada dia não visa o acúmulo, mas a sobrevivência. No livro de Provérbios encontramos o mesmo pedido: “afasta de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem riqueza e nem pobreza, concede-me o meu pedaço de pão” (Pr 30,8). O pão simboliza o alimento. É o pobre que pede o alimento para a sua própria subsistência.

O apelo profético do livro do Terceiro Isaías tem que continuar sempre vivo nas comunidades cristãs de todos os tempos: o jejum que agrada a Deus é “repartir o teu pão com o faminto, em recolheres em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que vês nu e em não te esconderes daquele que é tua carne” (Is 58,7).

            “O perdão das dívidas!” Na realidade das comunidades cristãs muitas pessoas estavam enfrentando dívidas. Em Mateus 18, 23-35, há uma parábola que expressa bem essa realidade, nos últimos versículos lemos: “Então o senhor mandou chamar aquele servo e lhe disse: ‘Servo mau, eu te perdoei toda a tua dívida, porque me rogaste. Não devias, também tu, ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?’ Assim, encolerizado, o seu senhor o entregou aos verdugos, até que pagasse toda a sua dívida. Eis como meu Pai celeste agirá convosco, se cada um de vós não perdoar, de coração, ao seu irmão” (18,32-34).

O perdão de Deus exige justiça! Deus é misericordioso, ele sempre nos concede o seu perdão (Sl 25,11.18; 32,1; 79,9). Mas a maneira de receber o perdão de Deus é perdoando e vivendo o amor: “Porque a todo aquele que tem será dado e terá em abundância, mas daquele que não tem até o que tem lhe será tirado” (25,29). Assim, o perdão e o amor de Deus devem nos levar a perdoar e amar as pessoas com as quais convivemos e entramos em contato em nosso dia a dia assumindo a mesma atitude do Pai. O caminho do perdão e do amor não é fácil, é um aprendizado constante!

            “Não nos submetas à tentação”. Não pedimos a Deus que ele afaste de nós as tentações, mas que nos forças para superá-las. Há muitas forças que nos arrastam para o caminho do mal. Somos pessoas frágeis e só podemos vencer com o auxílio de Deus. Com esse pedido, expressamos nossa confiança em Deus que é maior do que a realidade do mal. É preciso acreditar que o bem sempre vence.

            “Livra-nos do Maligno” é o último apelo da oração do Pai-nosso. Esta súplica só aparece no evangelho de Mateus. Nos evangelhos, o Maligno é aquele que luta contra o reinado de Deus e impede que a semente do reino de Deus crie raízes no coração das pessoas: “Vem o Maligno e arrebata o que foi semeado no seu coração. Esse é o que foi semeado à beira do caminho” (13,19). Ele é o responsável pela presença do mal: “Veio o inimigo e semeou o joio no meio do trigo e foi-se embora” (13,25). A todo o momento somos tentados pelo mal.

            O mal muitas vezes está dentro de nós mesmos, como afirma a carta de Tiago: “Ninguém, ao ser provado, deve dizer: ‘É Deus que me prova’, pois Deus não pode ser provado pelo mal e a ninguém prova. Antes, cada qual é provado pela própria concupiscência, que o arrasta e seduz” (Tg 1,13-14). Que o Pai nos livre do mal. Essa oração é um programa de vida para a pessoa cristã e um guia para uma vida cristã coerente. A última palavra é o amém. A nossa confirmação de que estamos de acordo com esse projeto e ao nosso compromisso de dar continuidade ao projeto do Reino. Que o nosso Pai esteja conosco hoje e sempre, amém!

  Sumário: 1. Livro do Deuteronômio: Introdução  2. "Não explore o assalariado necessitado e pobre". Uma leitura de Dt 24,10-22  3...