UM
DEUS CIUMENTO E VINGATIVO
Uma
leitura de Dt 13,7-12
Shigeyuki Nakanose, svd
Maria Antônia Marques
Centro Bíblico Verbo
Intolerância, condenação e perseguição contra
outras religiões e divindades também fazem parte da realidade experimentada em
nossa sociedade. Basta recordar notícias, como por exemplo: “Sínodo da Amazônia: ultraconservadores roubam estátua
indígena de igreja e jogam no Rio Tibre em Roma. A imagem era uma réplica da
que foi usada em procissão e orações no Vaticano, durante o Sínodo dos Bispos
sobre a região amazônica. Vaticano afirma que se tratava somente de uma
representação da ‘sacralidade da vida’. Grupos ultraconservadores chamaram de
ícone ‘pagão’”.[1]
Com frequência ouvimos notícias de ataques
contra diferentes igrejas e movimentos religiosos. Em nome de uma fé pura,
destroem-se símbolos religiosos de diferentes igrejas. O Antigo Testamento
também registra várias perseguições contra outras religiões e divindades. Um
das perseguições mais conhecidas é a reforma do rei Josias que destrói os
santuários do interior e as divindades domésticas dos camponeses em nome de
Javé, o Deus do Estado, seguindo a lei escrita em Dt 13,7-12. Por que o rei
executa a perseguição? Quem é Javé oficial?
1. Javé oficial persegue outras
divindades com violência
Com característica típica de uma antiga bênção
semita, Jacó proclama as bênçãos para os seus filhos em Gn 49,1-28 – as “bênçãos
de Jacó”. Para José, é reservada uma bênção mais longa, por causa da
proeminência da “Casa de José” (Efraim e Manassés) na história de Israel:
José é potro selvagem, potro junto à
fonte, burros selvagens junto ao muro. Os arqueiros os irritam, desafiam e
atacam. Mas o seu arco fica intacto e seus braços se movem velozes, pelas mãos
do Poderoso de Jacó, do Pastor e Pedra de Israel, pelo Deus de seu pai que o
socorre, por Shadai que o abençoa: as bênçãos que descem do céu e as bênçãos do
oceano embaixo, bênçãos das mamas e do útero. As bênçãos de seu pai são
superiores às bênçãos dos montes antigas e às atrações das colinas eternas. Que
elas venham sobre a cabeça de José, sobre a fronte do consagrado entre os
irmãos (Gn 49,22-26).
Como a maioria dos textos do Antigo
Testamento, a última redação do texto das “bênçãos de Jacó” foi feita por volta
do ano 400 a.C., no período de Neemias e Esdras, no qual o monoteísmo de Javé
foi consolidado: “Portanto, reconheça hoje e medite no coração: Javé é que é o
único Deus, tanto no alto do céu, como cá embaixo na terra. Outro não existe (Dt
4,39; cf. Ro, 2018,33-73).
Apesar disso, as bênçãos de José conservam,
em Gn 49,25, as várias denominações antigas de deuses – o Deus (El) de seu pai;
Todo-Poderoso (Shadai); o Deus das mamas e do útero – e refletem a sociedade
politeísta das tribos de Israel, formadas de diversas origens. Nas últimas
décadas, a arqueologia e as pesquisas literárias têm comprovado que a maioria
dos primeiros israelitas era cananeus e prestava cultos aos vários deuses e
deusas, cultuados na sociedade de Canaã:
- El: “‘Eu sou o El de Betel, onde você
(Jacó) ungiu uma coluna sagrada e me fez um voto’. Agora levante-se! Saia dessa
terra e volte para a terra de seus parentes” (Gn 31,13). El é o Deus supremo do
panteão de Canaã e de Ugarit (LANG, 2002, 24-25). A proeminência do Deus El
reflete o nome “Israel”, que significa “El é quem luta” (cf. Gn 32,29);
- Shadai: “Deus falou a Moisés: ‘Eu sou
Javé. Apareci a Abraão, a Isaac e a Jacó como El Shadai, mas a eles não dei a
conhecer meu nome de Javé” (Ex 6,2-3). El Shadai é o Deus das estepes, das
montanhas (RÖMER, 2016, 84-85). Na Bíblia grega (LXX), “Shadai” é traduzido por
“todo-poderoso”;
- Elohim: “‘Eu sou o Deus (Elohim) do seu
pai, o Deus (Elohim) de Abraão, Deus (Elohim) de Isaac, Deus (Elohim) de Jacó’.
Moisés cobriu o rosto, pois teve medo de olhar diretamente para Deus (Elohim)”
(Ex 3,6). Elohim é o Deus dos pais, o Deus dos antepassados (Gn 31,53; cf. VAN DER
TOORN, 1996, 255-265).
- Baal, “o senhor”: “E, aconteceu, nessa
mesma noite, que Javé disse a Gedeão: ‘Você destruirá o altar de Baal que
pertence a seu pai, e quebrará o poste sagrado da deusa Aserá que está ao
lado’” (Jz 6,25). Com o movimento da centralização do culto em Jerusalém, em
nome de Javé, o Deus nacional, os redatores deuteronomistas proibiram cultuar
qualquer outra divindade. Contudo, Baal, considerado proprietário do solo e divindade
da chuva e da fecundidade, era bem cultuado pelos camponeses israelitas. Sua
imagem foi colocada até nos santuários dos reis para promover o culto nacional
(1Rs 16, 29-32; 2Rs 21,1-4; cf. RÖMER, 2016, 116-122).
- Aserá: O poste sagrado (Aserá) é o
emblema da Deusa do amor e da fecundidade (Ex 34,13). Na mitologia ugarítica,
Aserá é esposa de El. No Antigo Testamento, ela aparece como mulher de Baal
(1Rs 16,33; 2Rs 21,3). Segundo as últimas pesquisas arqueológicas, Aserá era cultuada
ao lado de Javé nos santuários israelitas (LIPINSKI, 2018,139-144).
- Terafim: “Labão tinha ido tosquiar o
rebanho, e Raquel roubou os terafins que pertenciam a seu pai” (Gn 31,19.30),
Os terafins são as divindades domésticas, uma espécie de deus do lar, muitas
vezes associado à fé no “efod”, um antigo objeto cultural, destinado à
adivinhação (Jz 17,5: cf. FARBER, 2018, 447).
Agora, quem é Javé?[2]
A compreensão tradicional do Antigo Testamento é marcada pelo monoteísmo, que apresenta
Javé como o Deus único de Israel. No entanto, nas últimas décadas, a
arqueologia e as pesquisas literárias comprovaram a existência de um panteão
das divindades e Javé como uma delas, ao lado El, Baal e Aserá. Com a chegada
da monarquia em Israel, Javé, o Deus do exército (Ex 15,2-3), ganha pouco a
pouco o espaço e é cultuado como o Deus nacional do Estado, destronando os
demais.
Na história do reino de Israel Norte[3],
o rei Jeú, junto com Eliseu, por exemplo, proclama Javé como a divindade nacional
do Estado, massacrando os adoradores de Baal e Aserá:
Jeú reuniu todo o povo e falou: “Acab
cultuou pouco a Baal. Jeú vai cultuá-lo muito mais. Agora, portanto, chamem
todos os profetas de Baal, todos os seus fiéis e sacerdotes. Ninguém deve
faltar, pois quero oferecer um grande sacrifício a Baal. Quem faltar, morrerá”.
Jeú estava agindo com esperteza para acabar com os fiéis de Baal. [...] Jeú
entrou para oferecer sacrifícios e holocaustos. Do lado de fora, porém, tinha
colocado oitenta homens, com esta ordem: “Quem deixar escapar uma só dessas
pessoas que eu vou entregar-lhe, pagará com a própria vida”. Logo que terminou
de oferecer o holocausto, Jeú disse aos guardas e escudeiros: “Entrem e matem
todos. Não deixem sair ninguém”. Os guardas e escudeiros os mataram a fio de
espada e os lançaram fora. Voltaram novamente à cidade, ao templo de Baal,
arrancaram as colunas sagradas do templo e as queimaram
(2Rs 10,18-19.24-26).
Na aliança com a Fenícia, representada pela
princesa Jezabel, o rei Acab instala em Samaria o templo de Baal, o Deus
nacional da Fenícia (1Rs 16,29-34). Para derrubar a dinastia de Acab e tomar o
poder, Jeú mata Jezabel e extermina os descendentes de Acab (2Rs 10,1-11). O
fim da dinastia de Acab, com a destruição do templo de Baal, significa o fim da
aliança Israel Norte com a Fenícia. Em contraposição, institui-se a dinastia de
Jeú, apoiada pela Síria (FINKELSTEIN, 2015,109), o culto oficial a Javé. A luta pelo poder transforma-se em luta de
deuses: Javé, Baal, Aserá etc.
Na história de Judá[4],
o rei Ezequias promove o culto oficial a Javé, o Deus nacional, para justificar
e fortalecer a centralização do culto em Jerusalém como centro religioso único,
perseguindo outras manifestações religiosas:
Ezequias fez o que é correto dos olhos
de Javé, seguindo em tudo a maneira de agir de seu pai Davi. Acabou com os
lugares altos, quebrou as colunas sagradas e derrubou a Aserá. Despedaçou
também a serpente de bronze que Moisés havia feito, por que os filhos de Israel
ainda queimavam incenso dela. Eles a chamavam de Noestã
(2Rs 18,3-4).
Como a Aserá (coluna sagrada), a
serpente era associada aos cultos de fertilidade. Os reis utilizavam essas
divindades, populares entre os camponeses, para promover os interesses do
Estado. Ao promover e escrever a reforma de Ezequias (2Rs 18,18-20), os
redatores deuteronomistas, promotores da centralização do culto em nome de
Javé, condenaram Aserá e a serpente como idolatria. Entretanto, o culto oficial
a Javé, o Deus nacional, também era um meio de fortalecer o interesse do poder
do Estado. Por exemplo, no mesmo período, Miqueias, profeta da aldeia, criticou,
em nome do Javé popular, a religião do Javé nacional, promovida pelos
sacerdotes e profetas da corte do rei Ezequias (Mq 2,6-11).
A reforma de Ezequias foi interrompida
pela invasão da Assíria (701 a.C.). Com a morte de Ezequias, seu filho Manassés
assumiu o poder em Judá (687-642 a.C.). Ao contrário de Ezequias, Manassés
seguiu fiel à Assíra, introduzindo em Jerusalém o culto às divindades assírias:
“exército do céu”. Restabeleceu os
cultos às divindades nos lugares altos, como Baal e Aserá, juntamente com Javé
(2Rs 21,3).
Os deuteronomistas condenaram
Manassés como um dos piores reis de Judá por causa da sua infidelidade ao Javé
oficial, apontada até como causa do exílio na Babilônia, mas a arqueologia
indica que o reinado de Manassés foi um dos mais prósperos e pacíficos (KAEFER,
2015, 99-100). Vejamos os motivos desta prosperidade:
- Sendo leal a Assíria, Manassés conseguiu
reinar por 45 anos num clima relativamente estável, o que incentivou o
desenvolvimento de Judá: houve um grande aumento de assentamentos e do
crescimento comercial.
- Com
o restabelecimento dos cultos nos lugares altos (santuários), Manassés retomou
as boas relações com os anciões das aldeias e seus sacerdotes dos santuários, ajudando
a corte a promover a economia e o desenvolvimento do Estado.
Com a morte de Manassés e seu filho Amon
(642-640 a,C,), Josias assumiu o trono (640-609 a.C.). Aproveitando o
enfraquecimento da Assíria por causa da guerra contra a Babilônia, Josias
retomou a política nacionalista de centralização e de Javé como o Deus
nacional, iniciada por Ezequias, perseguindo e destruindo as divindades
cultuadas no reinado de Manassés (KAEFER, 2015, 99-107):
O rei (Josias) mandou que o sumo
sacerdote Helcias, os sacerdotes de segunda ordem e os guardas da porta
tirassem do santuário de Javé todos os objetos feitos para o culto de Baal, de
Aserá e de todo o exército dos céus. Os objetos foram queimados fora de
Jerusalém, no vale do Cedron, e as cinzas foram levadas para Betel
(2Rs 23,4).
Com efeito, a eliminação do
“exército dos céus” pode ser compreendida como uma declaração da política
nacionalista e expansionista de Josias diante da Assíria. Mas a política
nacionalista de centralização atingiu até a religiosidade popular dos
camponeses:
Josias eliminou também os que evocam os
mortos, os adivinhos, os deuses domésticos, os ídolos e todas as abominações
que se viam na terra de Judá e em Jerusalém, para cumprir as palavras da Lei
escritas no livro que o sacerdote Helcias encontrou na Casa de Javé
(2Rs 23,24).
Josias segue os mesmos princípios da
reforma deuteronomista de Ezequias (o livro da lei, Dt 12-26[5])
e até radicalizou a centralização do culto a Javé, o Deus nacional, perseguindo
a prática religiosa dos camponeses e destruindo objetos de culto a divindades
como os deuses domésticos (terafins). O texto de Dt 13,7-12, relido e redigido
no tempo de Josias, revela uma perseguição violenta (LUNDBOM, 2017,16-27).
2. A reforma
de Josias atinge a religiosidade popular
A centralização do culto a um único
Deus, Javé, em Jerusalém provocou a destruição dos santuários do interior,
concorrentes do templo de Jerusalém; a destruição dos objetos de culto às
divindades; a morte ou destituição dos sacerdotes do interior, ou sua redução a
uma categoria subalterna (2Rs 23,4-14). Toda essa violência teve motivo maior:
apesar do caráter religioso da reforma, o objetivo do rei Josias era a
centralização do poder socioeconômico para a sua política expansionista, que se
manifestou, por exemplo, na invasão violenta do território israelita do Norte
(2Rs 23,15).
A violência atingia até a casa e as
relações familiares: “Se seu irmão, filho de seu pai ou de sua mãe, ou seu
filho ou filha, ou a mulher que repousa em seu peito, ou um amigo que você quer
como a si mesmo, tentarem seduzir você secretamente, convidando: ‘Vamos servir
a outros deuses [...], não concorde, nem o escute. Que seu olho não tenha
piedade dele, não use de compaixão, nem acoberte o erro dele. Pelo contrário,
você deverá matá-lo” (Dt 13, 7-10a).
“Seu irmão, filho de seu pai ou de
sua mãe”: essa referência ao pai, o membro mais importante da família
poligâmica refletia a vida da casa e as relações das famílias ampliadas da
aldeia (CHRISTENSEN, 2001, 275-276). Até a família e casa se tornaram-se o alvo
da reforma de Josias: o rei, por exemplo, impôs a festa da Páscoa no templo de
Jerusalém (2Rs 23,21-13), até então acontecia nas casas e aldeias para celebrar
e fortalecer as relações familiares de solidariedade e de convivência.
“Vamos servir a outros deuses”: o
texto não especifica os nomes de deuses. Podiam ser Baal, Aserá, deuses da
fertilidade da terra, animais e mulheres, bem cultuados pelos camponeses na
vida do dia a dia. O algo da perseguição
podia ser também os “deuses domésticos”, o deus do lar, que sacraliza os laços
familiares da casa.
Evidentemente, a proibição do culto às
divindades em casa, nas aldeias e nos santuários enfraqueceu a força e a
resistência do interior, ao mesmo tempo fortalecendo o controle do Estado sobre
o povo para executar a política expansionista e militar, que posteriormente
levou Judá à destruição e ao exílio da Babilônia. Era a mesma política
expansionista que é criticada por Jeremias, profeta dos camponeses, em nome do
Javé popular (Jr 28).
“E para matá-lo, sua mão será a primeira. Em
seguida, a mão de todo o povo. Apedreje-o até que morra (Dt 13,10-11a): o
apedrejamento tinha dupla significação: por um lado, a pena permitia a execução
coletiva; todos os membros da comunidade deviam sentir-se diretamente responsáveis
pela execução da ordem; por outro, o apedrejamento, conforme a lei judaica, era
aplicado àquilo que ia contra o sagrado, principalmente quando se tratava de
“idolatria” (Dt 17,5), e o culpado se tornava intocável e devia ser morto, sem
que nele encostassem (Ex 19,13).
“Servir a outros deuses”, portanto, era um
sacrilégio e o culpado era rejeitado e morto pela comunidade, fortalecendo o
controle do Estado sobre a vida cotidiana do povo. Os governantes amarravam e
utilizavam as relações familiares da casa e da aldeia para impor Javé, o Deus
nacional do templo de Jerusalém. A centralização do culto a serviço do poder
alcançou sua função máxima e duradoura com a eliminação de qualquer infiltração
de “teologia” de deuses na família e na casa, pela pena máxima de
apedrejamento.
A reforma de Josias utilizava ainda outro
meio para fortalecer a centralização do culto: “Apedreje-o até que morra, pois
tentou afastar você de Javé, o seu Deus, que o tirou do Egito, da casa da
escravidão” (Dt 13,11), Em Dt 5-28, texto relido e ampliado no período de
Josias, há várias menções sobre a tradição do êxodo – um total de 32. Além da
argumentação das leis sociais, a tradição do êxodo era utilizada para justificar
a imposição do Javé oficial, instituído pela corte de Josias:
·
“Cuidado consigo mesmo para não se esquecer
de Javé, que o tirou do Egito, a casa da escravidão. É de Javé, o seu Deus, que
você terá temor, a ele é que você servirá e pelo seu nome vai jurar” (Dt 6,12-13);
·
“Sigam a Javé, o Deus de vocês, e tenham
temor a ele; observem seus mandamentos e obedeçam à sua voz; sirvam a ele e a
ele se apeguem. Quanto ao profeta ou sonhador, deverá ser morto, porque propôs
a rebelião contra Javé, o Deus de vocês, que tirou vocês do Egito e os resgatou
da casa da escravidão, e porque procurou afastar você do caminho pelo qual
Javé, o seu Deus, lhe havia mandado seguir” (Dt 13,5-6). A denominação “profeta
ou sonhador” indica os sacerdotes que prestavam os cultos às divindades nos
lugares altos, como Baal e Aserá, juntamente com Javé.
·
“Se você não colocar em prática todas as
palavras desta lei escritas neste livro, alimentando o temor a este nome
glorioso e terrível – Javé, o seu Deus – Javé ferirá você e sua descendência
com pragas espantosas, pragas tremendas e persistentes, doenças graves e
incuráveis. Ele voltará contra você as pragas do Egito, que o horrorizavam, e
elas se grudarão em você” (Dt 28,58-60).
Na tradição religiosa dos israelitas, o Deus
do êxodo é uma divindade sensível ao sofrimento do povo oprimido, que escuta
sua voz: “Javé disse: ‘Estou vendo muito bem a aflição do meu povo que está no
Egito. Ouvi seu clamor diante de seus opressores, pois tomei conhecimento de
seus sofrimentos. Desci para libertá-lo do poder dos egípcios’” (Ex 3,7-8a). A
fé no Javé popular, Deus libertador, morava no coração dos camponeses e era invocado,
muitas vezes, no sofrimento e nos momentos de crise existencial (cf. Sl
68,2-21).
No entanto, a reforma de Josias utilizou e
apropriou-se justamente do Deus do êxodo para impor a centralização do culto em
Jerusalém. Com a força da imposição, esse Deus do êxodo deixou de ser a
divindade sensível à vida. Pelo contrário, passou a perseguir e matar quem não
obedecia à ordem do Estado, instalando o terror e o medo: “Sabendo disso, todo
o Israel ficará temeroso e nunca mais se fará em seu meio ação assim tão má (Dt
13,12).
Atenção: “deuses que nem você nem seus pais
conheceram, deuses dos povos que estão ao redor de você, próximos ou distantes
de você, de uma extremidade à outra da terra” (Dt 13,7b-8): o texto é um acréscimo
do pós-exílio, momento em que os teocratas expulsaram os estrangeiros em nome de
Javé oficial, o Deus único, e condenaram suas religiões e culturas (cf. Ne
13,23-27).
3. Javé popular, sensível às
injustiças, escuta as pessoas oprimidas
Miqueias, um camponês profeta no período
perturbado da reforma de Ezequias (716-701 a.C), viveu no meio do povo
espoliado (Mq 3,1-3) e denunciou, em nome do Javé popular, as injustiças
praticadas pelos dirigentes da corte: “Ouçam isto, chefes da casa de Jacó.
Prestem atenção, governantes de Israel, vocês que têm horror ao direito e
entortam tudo o que é reto, que constroem Sião com sangue e Jerusalém com
perversidade. Os chefes de vocês proferem sentença a troca de suborno. Seus
sacerdotes ensinam a troca de lucro e seus profetas dão oráculos por dinheiro”
(Mq 3,9-11a).
No entanto, os governantes contestavam
as denúncias de Miqueias em nome do Javé oficial do templo de Jerusalém:
- “E ainda ousam apoiar-se
em Javé, dizendo: ‘Por acaso, Javé não está no meio de nós? Nada de mau nos
poderá acontecer!’” (Mq 3,11b);
- “Eles profetizam: ‘Não
profetizem, não profetizem essas coisas! A desgraça não cairá sobre nós.
Porventura a casa de Jacó foi amaldiçoada? Acabou a paciência de Javé? É isso
que ele costuma fazer? Por acaso a promessa dele não é de benção para quem vive
com retidão’” (Mq 2,6-7).
A elite governante se vangloriava do Javé
oficial do templo de Jerusalém, como fonte da graça e proteção, e insistia em
sua conduta, conforme à aliança com esse Deus, e na legitimidade de ser o povo
eleito e abençoado, que não sofrerá castigo algum. Javé oficial, instituído
pela corte de Ezequias e fortalecido pela corte de Josias como Deus nacional de
Israel, não era mais a divindade sensível às injustiças, que vê e escuta as
pessoas oprimidas (MARQUES/NAKANOSE/Centro Bíblico Verbo, 2016, 48-51).
Apesar da imposição do Javé oficial pela
corte de Jerusalém, os profetas populares continuavam pregando o Deus dos
pobres e oprimidos. O profeta Sofonias (640-620 a.C.), por exemplo, proclamava:
“Procurem a Javé, como todos os pobres da terra que praticam o direito por ele
estabelecido. Procurem a justiça, procurem a pobreza” (Sf 2,3); “Ai da rebelde,
da manchada, da cidade opressora! Cidade que não escutou o chamado, que não
aprendeu a lição. Ela não confiou em Javé, nem se aproximou do seu Deus. Seus
oficiais são leões que rugem: seus juízes são lobos à tarde, que não comeram
nada desde o amanhecer; seus profetas são uns fanfarrões, mestres de traição;
seus sacerdotes profanam as coisas santas e violentam a Lei de Deus. Mas no
meio dela está Javé, que é Justo, que não pratica a injustiça” (Sf 3,1-5).
As constantes críticas e
exigências para uma política justa, apresentadas pelos profetas em nome do Javé
popular, não evitaram o desastre nacional. Pela ambição pelo poder, os últimos
reis de Judá, intrigados pelo Egito, executaram a política expansionista e
provocaram as duas invasões da Babilônia, a destruição e o fim da realeza (587
a.C.).
Durante o tempo do exílio, a
cidade de Jerusalém foi devastada; os governantes, massacrados; funcionários do
templo, pequenos comerciantes, artesãos e agricultores foram levados como
escravos para o exílio da Babilônia (2Rs 25,1-21): “Seu povo é um povo
espoliado e roubado, todos presos em cavernas, trancados em prisões. Era
saqueado, e ninguém o libertava. Despojado, e ninguém dizia: ‘Devolvam isso’”
(Is 42,22).
A situação de abandono e de
desolação: violência física e sexual, fome, sofrimento e desespero. Apesar
disso tudo, a fé teimosa dos pobres oprimidos no Javé popular ressurgiu com o
rosto do Deus Pai e Mãe, sensível às injustiças e aos sofrimentos do povo:
- “Não tenha medo,
pois eu estou com você. Não precisa olhar com desconfiança, pois eu sou o seu
Deus. Eu fortaleço você, eu o ajudo e o sustento com minha direita vitoriosa.
[...] Não tenha medo, vermezinho Jacó, bichinho Israel. Eu mesmo o ajudarei –
oráculo de Javé. Seu protetor é o Santo de Israel” (Is 41,10. 14);
- “Sião dizia: ‘Javé
me abandonou, o Senhor me esqueceu!’ Mas pode a mãe se esquecer do seu nenê?
Pode ela deixar de ter amor pelo filho de suas entranhas? Ainda que ela se
esqueça, eu não me esquecerei de você. Veja! Eu tatuei você na palma da minha
mão” (Is 49,14).
O fim do exílio fez o povo sonhar de novo com
uma sociedade de justiça e fraternidade, mas a história repetiu-se, como no
tempo da monarquia. Após o exilo, o império Persa e seus súditos, como Neemias
e Esdras, com o Deus oficial da teologia da retribuição baseada na lei do puro
e do impuro, exploraram e oprimiram o povo através do templo, cobrando o sacrifico
de purificação, o dízimo etc. Javé oficial do templo foi consolidado como Deus
único, Criador do universo e Senhor da história.
Fora do templo, a elite dirigente cometia as
injustiças: “Acontece que vocês, mesmo quando estão jejuando, só cuidam dos
próprios interesses e continuam explorando quem trabalha para vocês. Vejam!
Vocês jejuam entre rixas e discussões, golpeando sem piedade” (Is 58,3-4); “Muitos
mudam os marcos da divisas, roubam os rebanhos e os levam a pastar. Levam
embora o jumento que pertence ao órfão, e penhoram o boi que é da viúva [...]
Arrancam o órfão do peito materno e penhoram quem é pobre. Da cidade sobem os
gemidos dos moribundos e, suspirando, os feridos pedem socorro, e Deus não dá
ouvido a essa infâmia” (Jó 24,2-3.9.12).
A última frase confirma que o Deus oficial do
templo não escuta os gritos dos pobres oprimidos porque eles não têm condição de
oferecer os sacrifícios de purificação e são “impuros”. Os pobres eram abandonados
e oprimidos sem limite! Contudo, Javé popular não abandonava os pobres.
Enquanto os governantes teocratas apresentavam esse deus oficial do templo,
poderoso, ciumento e vingativo, para controlar e excluir os impuros – pobres,
doentes, estrangeiros –, a fé teimosa no Javé popular continuava fazendo os
pobres oprimidos afirmarem que Javé, o Deus sensível às injustiças e às
violências, via, ouvia, conhecia os sofrimentos, tornando-se presença
libertadora junto aos oprimidos:
- “Eu sei que o meu protetor
está vivo e que no fim se levantará sobre o pó. E ainda que tenham cortado
minha pele, na minha carne eu verei a Deus. Então, eu mesmo o verei! Meus olhos
poderão vê-lo, e não um estranho. Meus rins se consomem dentro de mim” (Jó
19.25-27);
- “Escute-me, porque vou
falar. Vou interrogá-lo, e você (Deus) me responderá. Eu te conhecia só de
ouvido. Mas agora meus olhos te vêem. Por isso, eu tenho horror de mim e me
arrendo sobre o pó e a cinza” (Jó 42,4-6). Jó, pobre oprimido, é “catequizado”
pelos teocratas: Deus se manifesta só no santo dos santos do templo. Agora,
pela experiência dura da vida cotidiana, ele percebe e experimenta que o Deus
sensível à dor humana está no meio dos sofredores impuros;
- “Porque ele não desprezou
a aflição do pobre, nem escondeu dele a sua face. Quando o pobre pediu auxílio,
ele escutou” (Sl 22,25).
A teologia do Javé oficial e
sua lei do puro e do impuro perpassaram a história, consolidaram-se e chegaram
ao Sinédrio do tempo de Jesus. Fariseus pregavam a salvação pela estrita
observância da lei do puro e do impuro e impunham o Deus poderoso, legalista e
castigador a fim de incentivar o medo na população judaica, visando o controlo.
Com a imposição do temor ao “sagrado” do templo de Jerusalém, proibiram até o
uso do nome de Javé, designando-o como “Meu Senhor” (adonai em hebraico).
Porém, a fé no Javé popular
não se apagou. Os pobres afirmavam que Javé, Deus libertador e misericordioso
dos impuros, estava meio deles: “Eu te louvo. Pai, Senhor do céu e da terra,
porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos
pequeninos. Sim, Pai, assim foi do teu agrado” (Lc 10,21). Deus Pai dos
pequenos! O Deus da vida não se encontra na observância legalista de normas,
rituais e doutrinas dos "sábios” autossuficientes, mas no seguimento dos
“pequenos” ao amor de Deus.
No movimento de Jesus de
Nazaré, Deus continua sendo Deus paternal e maternal da gratuidade que escuta e
acolhe as pessoas em situação de pobreza extrema, sem recursos e sem esperança,
na Galileia: “Felizes vocês, os pobres, porque de vocês é o Reino de Deus.
Felizes vocês, que agora têm fome, porque serão saciados. Felizes vocês, que
agora choram, porque hão de sorrir” (Lc 6,20-21),
No seguimento de Jesus, a comunidade joanina destaca-se
ao apresentar o Deus Pai do amor no mundo em que o império romano utilizava a
religião imperial, com o culto ao imperador divinizado e seus deuses poderosos,
para impor e legitimar o poder e a dominação (NAKANOSE/MARQUES/CENTRO BÍBLICO
VERBO, 2019, 116-129):
- “Eu sou o bom pastor:
conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu
conheço o Pai, e exponho a minha vida pelas ovelhas” (Jo 10,14-15);
- “Se alguém me ama,
guardará a minha palavra, e meu Pai o amará. Eu e meu Pai viremos e faremos
nele nossa morada” (Jo 14,23);
- “Quem não ama não conhece
a Deus, porque Deus é amor. Nisto se tornou visível o amor de Deus entre nós:
Deus enviou o seu Filho único ao mundo, para podermos viver por meio dele” (1Jo
4,8-9).
É preciso que estejamos sempre dispostos e
dispostas a renovar nossa aliança com o Deus “popular”, sensível às injustiças,
que escuta as pessoas oprimidas e caminha com elas porque “Deus é amor”. Que a
fé no Deus da vida, vivenciada pelo amor e pela justiça, fortaleça e anime a
nossa caminhada para que todos tenham a vida, sobretudo no Brasil, que já soma
13,5 milhões de miseráveis que sobrevivem com 145 reais mensais.
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[2] Sobre a
origem de Javé, cf. RÖMER, Thomas. A
origem de Javé: o Deus de Israel e seu nome. São Paulo: Paulus, 2014; SMITH,
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Jürgen/WITTE Markus (org.). The Origins
of Yahwism. Berlin/Boston: De Gruyter, 2019, pp. 23-43.
[3] Sobre a história de
Israel Norte, cf. LIPINSKI, Edward. A
history of the Kingdom of Israel. Leuven: Peeters, 2018, pp. 33-128
[4] A arqueologia
comprova um grande desenvolvimento em Judá, tanto na capital Jerusalém quanto
no interior, a partir de 722 a.C. Sobre os dados arqueológicos, cf.
DEVER,William G. Beyond the Texts: an Archaeological Portrait of Ancient Israel
and Judah. Atlanta: SBL Press. 2017, pp. 547-627.
[5] Para a introdução literária,
sociológica e histórica do livro do Deuteronômio, nos livros em português, cf.
RÖMER, Thomas, A chamada Histórica
Deuteronomista. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008; GALVAGNO, Germano/GIUNYOLI,
Federico. Pentateuco. Petrópolis, RJ:
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