A
LEI EM FAVOR DA VIDA?
Entendendo
o Livro do Deuteronômio
Shigeyuki Nakanose
Maria Antônia Marques
Centro Bíblico Verbo
Ao abrir o livro do Deuteronômio (Dt), o
leitor atento percebe que está diante de um texto complexo, fruto de um longo
processo redacional e com diferentes imagens de Deus, como:
·
“Ele (Javé) faz justiça ao órfão e à viúva e
ama o migrante (estrangeiro), dando-lhe pão e roupa. Portanto, amem o migrante,
porque vocês foram migrantes na terra do Egito” (Dt 10,18-19).
·
“Javé, o nosso Deus, o entregou diante de
nós, e nós o derrotamos, como também a seus filhos e a todo o seu povo. Nessa
ocasião, capturamos todas as suas cidades e consagramos cada uma delas ao
extermínio. De homens, mulheres e crianças, não deixamos nenhum sobrevivente
(estrangeiros)” (Dt 2,33-34).
As contradições presentes, as variações de
estilo, as repetições, os diferentes cenários, a presença de unidades
autônomas, as várias frases introdutórias (Dt 1,1; 4,44; 6,1; 12,1; 28,69;
33,1) e a mudança de pronomes (“vós”: Dt 1,6-5,5; “tu”: Dt 5,6-21 etc.) indicam
que o livro do Deuteronômio foi composto aos poucos. Segundo estudos mais
recentes, o processo de redação desse livro durou quase quatro séculos: de
Jeroboão II até a reforma de Esdras (750 a.C. a 400 a.C.).
O título “Deuteronômio” vem de uma
interpretação equivocada feita pela tradução grega, chamada a Setenta (ou Septuaginta), na qual a expressão “cópia
da lei” foi traduzida por “segunda lei” (Dt 17,18). Na Bíblia Hebraica, o livro
se chama Debarim, que significa “Palavras”.
É assim que ele começa: “São estas as palavras que Moisés dirigiu a todo o
Israel” (Dt 1,1). De fato, o livro é composto por três discursos de Moisés e
suas últimas palavras: o primeiro (Dt 1,1-4,43), o segundo (Dt 4,44-26,19), o
terceiro (Dt 28,69-30,20) e as palavras finais de Moisés (Dt 31,1-34,12). É uma
narrativa que cobre o período da chegada do grupo de Moisés às planícies de
Moab após a saída (êxodo) do Egito.
No entanto, analisando o
texto dentro do seu contexto histórico-social percebemos que as leis sociais,
em suas formas orais mais antigas, contidas no núcleo legislativo (Dt 12-26),
têm sua origem no período pré-estatal de Israel (1200 -1000 a.C.). Essas leis
foram retrabalhadas e redigidas na monarquia do reino de Israel Norte, em meados
do século VIII a.C., especialmente pelo movimento profético em sua denúncia
contra a exploração e a dominação do Estado.
Com a queda de Samaria (722
a.C.), um grande número de israelitas do Norte refugiou-se em Judá, levando
consigo suas tradições. Entre elas, o material que serviu de fundamento para a
reforma do rei Ezequias, em 716-701 a.C. (2Rs 18), que estava preparando a
guerra contra a Assíria. O material foi revisto e ampliado pelos escribas do
rei, chamados de “deuteronomistas”. Eles produziram Dt 12-26, que provavelmente
corresponde ao “Livro da Lei” (2Rs 22,8), mencionado na reforma de Josias em
620-609 a.C. (2Rs 22-23). Nessa mesma reforma, estes escribas revisaram,
ampliaram e reeditaram Dt 12-26, transformando-o em 4,44-28,68, o chamado “livro
da Aliança” (2Rs 23,2), que legitimou a política nacionalista e expansionista do
rei Josias.
Mais tarde, no período do exílio e do pós-exílio,
o texto foi retrabalhado, recebendo uma introdução (capítulos 1-4), e uma
conclusão (capítulos 29-34), com o objetivo de responder às novas situações e
ser incluído no conjunto do Pentateuco. A partir de então, o Deuteronômio tornou-se
uma espécie de “ponte”: é o ponto final do Pentateuco e o começo da Obra
Histórica Deuteronomista, composta pelos livros de Josué, Juízes, 1 e 2Samuel e
1 e 2Reis.
1. Autor e Contexto
Histórico
O livro do Deuteronômio (Dt) não tem um único
autor, mas vários autores ou grupos sociais, com diferentes interesses,
situações, locais e momentos históricos. Não é possível precisar com exatidão cada
momento desse processo. Apresentaremos, em linhas gerais, alguns marcos de cada
período.
1) Período pré-estatal: o
êxodo, as leis sociais, a experiência de uma divindade sensível às injustiças e
ao sofrimento dos pobres.
O livro do Êxodo narra a opressão dos
escravos no Egito (Ex 3,7-9). Mais do que o fato histórico da saída dos
escravos do Egito, esse livro reflete um longo processo de releitura e
reinterpretação teológica dos êxodos de vários grupos. Por
volta de 1300 a.C., grupos de camponeses, pastores, operários, marginalizados (hapirus
- hebreus) etc. que viviam nos centros urbanos (planícies), eram explorados e
submetidos ao domínio dos reis das cidades-estado de Canaã e do faraó do Egito.
Esses grupos lutaram pela sobrevivência e saíram das planícies para a região
montanhosa no centro-norte de Canaã, região menos habitada e fora do controle
das cidades-estado e do Império.
Historicamente, teriam ocorrido inúmeros
êxodos (saídas) ou fugas. A partir de 1200 a.C., o êxodo da população empobrecida
e sofrida foi acelerado por causa da crise dos centros urbanos, causada por
fatores como a instabilidade política do império egípcio no final da Era do
Bronze (por volta de 1200 a 1150 a.C), provocando conflitos e guerras entre as
cidades-estado cananeias, os vassalos do Egito; as invasões dos povos do mar,
posteriormente chamados de filisteus, que aumentaram as guerras e as
instabilidades da região; uma prolongada seca no final da Era do Bronze, na
terra de Canaã, que causou a diminuição da produção de alimentos.
Os grupos de
refugiados que partiram em busca de vida e de liberdade ingressaram e ampliaram
as pequenas aldeias já existentes nas montanhas de Canaã ou abriram novos assentamentos para experimentar uma vida
livre, organizando-se em aldeias, vivendo um projeto igualitário: partilha e
uso comunitário da terra, partilha dos bens, lei da solidariedade, assembleia,
confederação de tribos na autodefesa dos diversos grupos, culto sem templo, sem
sacerdote e sem luxo. Assim nasceu o núcleo inicial do povo israelita (não do
Estado nacional), formado por pequenas aldeias comunitárias de famílias
ampliadas (clãs), a sociedade tribal em busca de condições mais adequadas de
vida.
A semente das leis sociais mais antigas,
presentes no Dt, provavelmente nasceu no período pré-estatal, na fertilidade da
vida das famílias, clãs e tribos. Em algumas leis presentes nesse texto
transparecem as características da organização comunitária, como “Abre a mão em
favor do seu irmão, do seu pobre e do seu necessitado, na terra onde você está”
(Dt 15,11); “Quando você entrar no pomar do seu próximo, pode comer à vontade,
até ficar satisfeito, mas não pode carregar nada no cesto” (Dt 23,25). A
experiência da opressão e libertação cria no povo uma sensibilidade especial em
relação aos pobres: estrangeiros, órfãos e viúvas (Dt 24,19).
Com o passar do tempo, uma norma ou lei
social criada em um grupo foi sendo partilhada e aplicada em outros (Dt 22,6-7).
Essas leis eram guardadas nas famílias e nos santuários, onde se faziam as
reuniões, discutia-se a prática jurídica e resolviam-se os problemas das
famílias, aldeias e das tribos. São as leis antigas presentes no Código da Aliança
(Ex 20,22-23,33) que o Dt relê e retoma, como Ex 23,10-11 em Dt 15,1-11 (ano
sabático); Ex 21,2-11 em Dt 15,12-18 (leis acerca dos escravos); Ex 22,28-29 em
Dt 15,19 (primícias e primogênitos) etc.
Os cultos na família e no santuário,
onde se recitavam as leis e manifestava-se a fé em divindades protetoras, eram espaços
privilegiados para manter a memória das tradições. Segundo as recentes
pesquisas, a maioria dos primeiros israelitas era cananeu e prestava culto a
várias divindades cultuadas na sociedade de Canaã: El (deus supremo), Elohim (deus
dos pais), Baal (deus da chuva); Aserá (deusa da fertilidade). E Javé?
Provavelmente era o deus dos exércitos e da guerra (Ex 15,2-3), e fazia parte
do panteão das aldeias e tribos camponesas como El e Baal.
Visto mais amplamente, Javé foi
reconhecido como o deus libertador do êxodo – o deus dos hebreus em Ex 3,18;
5,3; 7,16; 9,1.13; 10,3 –, uma divindade sensível à realidade de violência e de
injustiça, que via e escutava as pessoas exploradas e levantou-se para
libertá-las (Ex 3,7-8a). O êxodo dos hebreus que fugiram do Egito, considerado o
maior de todos os opressores no mundo antigo, tornou-se o evento fundante da fé
de Israel, que se manteve sempre viva ao longo de sua história.
2) Reino de Israel Norte: a lei da centralização; Javé como o Deus
oficial do Estado; as leis sociais do movimento profético popular; o Javé
popular dos camponeses.
Com Jeroboão II (783-743 a.C.), Israel Norte
teve um desenvolvimento sem precedentes. Reconquistou desde Lebo-Emat até o mar
de Arabá, conhecido como o mar Morto (2Rs 14,25) e intensificou o comércio
internacional, exportando principalmente azeite e vinho em grande quantidade
para a Assíria e para o Egito. Foi o tempo de maior prosperidade da história de
Israel Norte; sustentava-se a opulência da elite de Samaria: “Deitam-se em
camas de marfim. Esparramam-se em cima de sofás, comendo cordeiros do rebanho e
novilhos cevados em estábulos. Bebem canecões de vinho, usam os mais caros
perfumes” (Am 6,4.6a).
Para manter o desenvolvimento da indústria e
do comércio e a prosperidade, em favor de seus interesses, a corte precisou do
produto do campo, intensificando assim uma política de centralização. Um dos
meios foi a centralização do culto, das festas e do sacrifício no santuário de
Betel, chamado “santuário do rei” (Am 7,13), dentro do sistema de coleta de
tributos (Am 5,21-22).
Com a centralização do culto no santuário do
rei, a religião sofreu mudanças. Javé foi definido como o deus oficial do
Estado; embora já fosse reconhecida desde o reinado de Jeú (2Rs 9-10), consolidou-se
como o deus protetor da casa real e das instituições que sustentavam a
monarquia. Em nome da apostasia da fé em Javé, um deus oficial forte, o Estado
condenou as outras divindades principais como El e Baal, cultuadas nos
santuários do interior (Dt 13,13-16).
O reinado de Jeroboão II viveu o apogeu político
e econômico. Mas o progresso só favoreceu a elite da Samaria: famílias ligadas
à corte, grandes proprietários de terras etc. A maioria da população camponesa
sofria com injustiça, violência, explorada pela elite ao longo do
desenvolvimento: “Porque vendem o justo por dinheiro e o indigente por um par
de sandálias. Pisoteiam os fracos no chão e desviam o caminho dos pobres (Am
2,6-7a).
A reação a todo esse processo de
centralização foi iniciativa do grupo profético popular (Am 7,14-15), o
portador da tradição do êxodo: “Acaso não tirei Israel da terra do Egito, e de
Quir os filisteus de Cáftor e Aram? Os olhos do Senhor Javé se voltam para a
nação pecadora” (Am 9,7b-8a; cf. Os 11,1-4). O grupo faz uma forte oposição à
monarquia e às suas bases de sustentação, exaltando as leis sociais em defesa
dos pobres, que transparece no núcleo do Decálogo (Ex 20,1-21) e do Código da
Aliança (Ex 20,22-23,33), redigidos primeiramente no reino de Israel Norte.
Após a morte de Jeroboão II, por volta de
743, o cenário local muda completamente. Iniciava-se o expansionismo do Império
Assírio. Diante da pressão assíria, o poder central de Israel Norte ficou cada
vez mais enfraquecido e passou um momento de forte crise: a guerra
siro-efraimita (735-734 a.C.), as contínuas intrigas na corte, as guerras
internas (Os 4,1-3; 7,3-7) e a queda de Samaria (722 a.C.). Tudo isso fez com
que grande número de pessoas fugisse para Judá, levando consigo as diversas
tradições de Israel Norte: o movimento (leis) da centralização; Javé como o deus
oficial do Estado; as leis sociais do movimento profético popular; Javé como o
deus libertador do êxodo etc. São essas tradições que fazem parte dos elementos
básicos do Dt.
3) Reforma de Ezequias
(716-701 a.C.): as
leis sociais aplicadas na crise; o florescimento e a consolidação de Judá como
Estado; a política expansionista; a lei da centralização de culto em “lugar
escolhido pelo Senhor”; a aliança com Javé oficial do Estado; o livro da Lei.
Em 716 a.C., Ezequias subiu ao trono de Judá,
nação afetada pela destruição do seu vizinho Israel Norte, e iniciou a chamada
“reforma de Ezequias ou deuteronomista”, para enfrentar a crise e, ao mesmo
tempo, expandir a nação.
·
Leis
sociais aplicadas no momento de crise: a guerra e a queda da
Samaria forçou um grande número de pessoas a refugiar-se em Judá, o que obrigou
o governo de Ezequias a decretar leis sociais para amenizar a grave crise de
explosão demográfica, envolvendo estrangeiros, órfãos e viúvas (Dt 14,28-29;
16,11);
·
Florescimento
e consolidação de Judá como Estado: com a destruição de seu
concorrente Israel Norte, Judá foi integrada ao comércio internacional assírio,
aumentando o lucro com o comércio do mundo árabe, e começou a florescer com o
surgimento de uma elite ambiciosa e corrupta: “Presta atenção, governantes de
Israel, vocês que têm horror ao direito e entortam tudo o que é reto, que
constroem Sião com sangue e Jerusalém com perversidade” (Mq 3,9-10).
·
Política
nacionalista e expansionista: A Assíria entrou em crise
após a morte do imperador Sargão II (705 a.C). Aproveitando a instabilidade da
Assíria, Ezequias, instigado pelo Egito (2Rs 18,21), entrou no movimento
antiassírio, preparando-se para a guerra: fortaleceu a muralha da cidade
Jerusalém; construiu um canal subterrâneo para levar a água à cidade (2Rs 20,20)
etc. Tudo isso testemunhava a necessidade do Estado de centralizar a riqueza e o
poder, promovendo para isso a reforma da nação.
·
Lei
da centralização e fé no Javé oficial: para aumentar a riqueza e
o controle da nação, o rei Ezequias fortaleceu o poder de Javé como o Deus
nacional de Judá, destruiu os santuários do interior, centralizou o culto em
Jerusalém, “lugar escolhido pelo Senhor” (Dt 12,5.11.14.18.21.26; 14,24.25; 15,20; 16,2.6.7.11.15; 17,8; 26,2) e persegue as
outras divindades (Dt 13,7; 2Rs 18,4; 21,3; 2Cr 31,1). A fé arrogante da elite
corrupta de Jerusalém no Javé oficial transparecia em sua resposta contra a
crítica do profeta Miqueias ao Javé popular: “Por acaso, Javé não está no meio
de nós? Nada de mal nos poderá acontecer!” (Mq 3,11; 2,6-7); Foi a consolidação
da religião oficial de Javé.
·
Livro
da Lei e aliança com Javé, o Deus do Estado: os escribas da
corte coletaram e aprimoraram as leis sociais e religiosas para legitimar a
reforma de Ezequias em nome do Javé oficial do Estado. Escreveram a “primeira
edição” do Dt: capítulos 12-26, o núcleo legislativo ou o código
deuteronomista. O texto recebe a estrutura do tratado assírio (tratado de
vassalagem de Asaradon), no qual Javé assume a posição do rei da Assíria e faz
a aliança com o povo de Israel (Dt 13).
A reforma de Ezequias foi bruscamente interrompida
pela invasão dos assírios, por volta do ano 701 a.C. Resta para Judá humilhação
e submissão à Assíria.
REFORMA
DE EZEQUIAS: PRIMEIRA EDIÇÃO DO Dt – O CÓDIGO DEUTERONOMISTA: Dt 12 -26 (O
LIVRO DA LEI)
4) Reforma de Josias
(620-609 a.C): política expansionista e militar; lei da
centralização; imposição do Javé oficial do Estado; perseguição violenta contra
outras divindades e até dos deuses domésticos; livro da Aliança; Obra Histórica
Deuteronomista.
Por volta do ano 620 a.C., a Assíria entrou
em crise por causa da guerra contra a Babilônia e perdeu o domínio sobre a
Palestina. O Império Egípcio estava enfraquecido, e a Babilônia ainda não tinha
forças suficientes para a conquista militar. Houve um vácuo de poder na Palestina. Aproveitando esse momento, o rei Josias retomou
e executou a reforma de Ezequias, a política nacionalista de centralização do
culto em Jerusalém e fortaleceu Javé como a divindade oficial do Estado.
·
Perseguição
contra a religiosidade popular dos camponeses: Josias radicalizou
a centralização do culto a Javé, o Deus nacional (Dt 12,13-28; 2Rs 23,4-14), apropriou-se
da festa familiar da Páscoa para o Estado (Dt 16,1-8; 2Rs 23,21-23) e perseguiu
a prática religiosa dos camponeses (2Rs 23,24).
·
Destruição
dos santuários do interior e dos objetos de culto às outras divindades:
“Mandou vir todos os sacerdotes das cidades de Judá e violou os lugares altos,
onde esses sacerdotes haviam queimado incenso, desde Gaba até Bersabeia” (2Rs
23,8; cf. Dt 12,2-3). Os sacerdotes (levitas) do interior foram mortos ou
reduzidos a uma categoria inferior – cantores, porteiros, escribas etc. (2Rs
23,9: Dt 13,1-19), beneficiando os sacerdotes de Jerusalém, da família de
Sadoc. De fato, a reforma de Josias como a de Ezequias tinha o objetivo
político de centralizar o poder e a riqueza em benefício da elite de Jerusalém.
·
Política
expansionista e militar: o objetivo político da reforma evidenciava-se
na conquista de territórios do antigo reino de Israel Norte (2Rs 23,19). O rei
Josias provavelmente estendeu seu domínio até Meguido, oenfrentou o faraó Necao
e morreu na batalha de Meguido, por volta do ano 609 d.C. (2Rs 23,29).
·
Livro
da Aliança: para orientar e legitimar a reforma de Josias, os
deuteronomistas revisaram, ampliaram e reeditaram Dt 12-26, transformado-o em
4,44-28,68, chamando-o de livro da Aliança (2Rs 23,2). O texto ampliado retomava
a história passada de Israel para salientar a fidelidade à Lei com o culto
exclusivo a Javé (Dt 5,6-10).
·
Javé,
Deus do êxodo e Deus nacional de Judá: a aliança entre Javé e seu
povo foi fortalecida (Dt 5,2-3; 7,9.12; 9,11); em Dt 28, seguindo o formato dos
tratados assírios, Javé, Deus nacional de Judá, amaldiçoa e destrói o povo de
Israel, seu vassalo, se ele não cumprir as normas estabelecidas pelo Estado.
Ainda no contexto de conflito com o faraó do Egito, os deuteronomistas
mostravam Javé como o Deus do êxodo para legitimar a política expansionista e
militarista do rei (Dt 5,6; 6,12; 8,14).
·
Obra
Histórica Deuteronomista (OHD): os deuteronomistas
começaram a elaborar uma obra historiográfica, chamada OHD (Josué até 2Rs),
para fundamentar a identidade histórica do povo de Judá, para mostrar a
superioridade de Judá em relação a Israel Norte e justificar, por exemplo, as
conquistas do rei Josias sobre o Norte – conquistas essas projetadas pela
conquista de Josué (cf. Js 6 e 8). É compreensível
que Ezequias (2Rs 18,3-6) e Josias (2Rs 22,2) sejam elogiados sem restrições nessa
historiografia.
Temendo perder a independência e os
territórios, Josias enfrentou e morreu na batalha contra o faraó Necao (609
a.C), que avançava para a Assíria pelo litoral (2Rs 23,29). Com a morte de
Josias, Judá foi engolido pelos invasores, Egito e Babilônia. Foi o fim da
reforma e o início dos desastres nacionais.
REFORMA
DE JOSIAS: TEXTO REVISTO, AMPLIADO E REEDITADO: Dt 4,44-28,68 (O LIVRO DA
ALIANÇA)
5) Redação exílica
(587-538): quebra
da aliança, castigo de Javé; desastre nacional; arrependimento e volta à Lei de
Javé; não servir a outros deuses.
Joaquim (609-597 a.C.) e Sedecias (597-587
a.C.), sucessores de Josias, maltrataram o povo (cf. Hab 1,2-4; Ez 34,1-10),
foram instigados pelo Egito e se rebelaram contra a Babilônia, provocando o desastre
nacional (2Rs 23,36-25,21). A segunda invasão da Babilônia (587 a.C.) provocou
a destruição de Jerusalém e o exílio. Em meio ao sofrimento e ao desespero, os
sobreviventes da cidade perguntavam-se: quem foi o culpado? Javé, o Deus
nacional de Judá, abandonou o seu povo? Ou, Javé foi derrotado por Marduque, o
deus dos babilônios, de acordo com a teologia da época? As respostas estão em
Lm, Mq 4-5, Dt etc., textos escritos por escribas levitas, outrora a serviço do
templo de Jerusalém.
·
Castigo
de Deus: o desastre nacional foi considerado um castigo de Javé
contra a infidelidade, os pecados e os crimes do povo, sobretudo dos
governantes. Em Lamentações, lemos: “No entanto, Javé é justo, porque me
revoltei contra sua palavra” (Lm 1,18a); “Seus profetas lhe falaram de visões
falsas, mentirosas; nunca mostraram os pecados que você cometeu, para lhe mudar
o destino. Só lhe revelaram visões falsas, sedutoras” (Lm 2,14). A aliança
entre Javé e o seu povo foi quebrada por causa da falsidade e da ambição dos
governantes,
·
Política
militarista: o rei Sedecias, seus profetas e sacerdotes
seguiram a mesma política nacionalista de Josias (cf. Jr 28). Esse modo de agir
causou a catástrofe nacional para Judá: “Pelos pecados dos profetas e pelos
crimes dos sacerdotes é que derramaram sangue inocente dentro da cidade” (Lm
4,13).
·
Revisão
e ampliação do Dt: os escribas levitas revisaram e ampliaram Dt
4,44-28,68 para confirmar que o desastre nacional do exílio fora causado porque
o povo rompera a aliança, sobretudo dos governantes, desencadeando a cólera de
Jave, que os abandonou (Dt 4,21-31; 28,47-68; 29,20.24.27-28; 31,16-17.20). O
povo devia arrepender-se, converter-se e voltar ao caminho de Javé (Dt
30,15-20).
·
A
monarquia a serviço de Deus e do seu povo: Dt menciona o rei uma
única vez, em Dt 17,14-20. Trata-se de uma crítica direta contra a monarquia,
apontando as normas e os limites da autoridade dos governantes. As normas visavam
impedir os abusos do rei (Dt 17.16-17).
·
Obediência
total a Javé e à sua lei: os escribas salientavam a importância
do arrependimento e da obediência à lei para restabelecer a aliança com Javé (Dt
17,18-19).
·
Não
servir a outros deuses: os escribas levitas começam a
organizar as atividades religiosas na ruína de Jerusalém (Jr 41,5), confirmando
e exaltando a presença de Javé e sua lei em Sião (Mq 4,2). Combatia os outros deuses, como Baal e Asherá,
que novamente estavam sendo cultuados no interior de Judá: “Eles passaram a
servir e adorar a outros deuses, deuses que eles não conheciam e que Javé não lhes
tinha dado. Foi então que a ira de Javé se inflamou contra este país, fazendo
cair sobre ele toda a maldição escrita neste livro” (Dt 29,25-26). Como as
reformas de Ezequias e Josias, os escribas propagaram que Javé era o único deus
que Israel devia adorar, mas a existência de outras divindades não estava, em
absoluto, sendo contestada – a monolatria.
Nessa situação de destruição e de deportação,
sem rei e sem templo, o povo perdera toda a esperança. Os escribas levitas
tentaram animá-lo e orientá-lo para a vida e a felicidade: o arrependimento, a
conversão, a obediência à lei e retorno a Javé (Dt 30,15-16).
6) Redação pós-exílica
(538-400 a.C): monoteísmo
a serviço do governo teocrata; Israel como povo eleito e separado de Javé; lei
do puro e do impuro; responsabilidade individual; Moisés como figura mítica e
patrono da Lei.
O Império Persa, que dava liberdade religiosa
aos povos dominados, garantindo a submissão política e o tributo, transformou
Yehud, a província do império, em uma teocracia com o templo e a Torá. O templo
restaurado, sobretudo pelo grupo que retornou do exílio babilônico – a elite
judaíta exilada (golah: Ag 1,1-2,19;
Esd 1,1-6,22) –, estava repleto de membros sacerdotais (sadoquitas: Ml 1,6-2,9)
e escribas da golah, que voltaram para
reassumir suas funções no templo. Jerusalém tornou-se o centro religioso e
administrativo, explorando e oprimindo o “povo da terra”, a população rural que
permanecera na Palestina durante o exílio (Is 56,10-57,2; 58,1-7).
Por volta do ano 460 a.C., período de
incertezas e lutas pela sucessão no trono da Pérsia, pois o imperador Xerxes
foi assassinado em 465 a.C., houve uma revolta no Egito que contou com o apoio
dos gregos, e mais tarde na província do Transeufrates (Síria, Fenícia,
Palestina e Chipre). Por volta do ano 400, o Egito, já livre do Império Persa,
ameaçava avançar sobre a região siro-palestinense. Nessa grande instabilidade,
entre 450 e 400 a.C., o Império Persa, de olho no corredor siro-palestinense e
na rota Jericó-Amon-Moab, enviou Neemias e Esdras para reorganizar e fortalecer
a Judéia, região que fazia limite com o Egito. Sobretudo para conter o avanço
de egípcios e gregos, foi preciso instalar guarnições militares e fortalecer as
cidades de apoio no corredor siro-palestinense. A cidade de Jerusalém, com o seu
templo, consolidou-se como o centro do poder sociopolítico.
O sistema do templo, com a lei do puro e do
impuro, foi reforçado. A pessoa impura ficava impedida de participar da vida
comunitária e do culto no templo, considerado a morada exclusiva de Javé, único
Deus. A única forma de voltar a participar da sociedade e do templo era fazer o sacrifício de purificação, que incluía a
entrega de ofertas (Lv 11-16). Dessa forma, o templo e a lei tornaram-se os
principais mecanismos de arrecadação de tributos para a manutenção da teocracia
de Jerusalém, que repassava uma parte da arrecadação ao Império Persa.
Consolidava-se a sociedade teocrata em Yehud, com o controle da Pérsia (Esd
7,26). O texto de Dt 1-34, revisto e ampliado no período persa, reflete esta
realidade.
·
O
monoteísmo a serviço do governo teocrata: os teocratas descreveram
Javé como o único Deus e o Deus criador, como em “A você ele mostrou tudo isso,
para você reconhecer que Javé é que é Deus, e que não existe outro além dele.
Do céu, ele fez que você lhe ouvisse a voz que o corrigia, e na terra ele fez
que você visse o seu grande fogo, e do meio do fogo você pôde ouvir as palavras
dele” (Dt 4,35-36). Javé era considerado o único deus do universo! Por isso,
qualquer representação cúltica (estátuas de culto, ídolos, imagens) devia ser
rejeitada (Dt 4,9-20).
·
Israel
(dimensão ética) como povo eleito e separado de Javé: os
teocratas insistiram na segregação: “Quando Javé, o seu Deus, as (sete nações) entregar
a você, você vai liquidá-las, consagrá-las totalmente ao extermínio. Não faça
aliança nenhuma com elas, e delas não tenha piedade. Não crie laços de
parentesco com elas: não dê sua filha a um dos filhos delas, nem tome uma das
filhas delas para seu filho, porque seu filho se afastaria de mim para prestar
culto a outros deuses. A ira de Javé se inflamará contra você, e ele o
eliminará em pouco tempo” (Dt 7,2-4; cf. 23,4; Esd 9,1-10,44; Ne 13,23-31). A
eleição do povo de Javé e a proibição dos casamentos mistos protegem, consagram
e privilegiam a comunidade da golah
(teocratas), separado até mesmo do “povo da terra” (Dt 12,2-7).
·
“Circuncisão
do coração”: os teocratas transformaram o ritual da
circuncisão, junto com o sábado e as restrições alimentares, num sinal distintivo
de segregação. Assim está registrado: “Dentre todos os povos, ele escolheu
vocês, a descendência que lhes veio depois, como hoje se vê. Portanto,
circuncidem o coração, e nunca mais sejam insubmissos” (Dt 10,15b-16; cf;
30,1-14; Gn 17,10).
·
Lei
do puro e do impuro: os teocratas proibiram alguns cultos, como
o ritual de luto, para manter a pureza do povo eleito de Javé (Dt 14,1-2). A
proibição estendia-se também a alimentação (Dt 14,3-21: cf. Lv 11,1-47).
·
Lei
e teologia da retribuição: na realidade, a observância da lei do
puro e do impuro foi justificada e fortalecida pela teologia da retribuição,
que, afirmava que Deus recompensava a pessoa justa (que observava a lei do puro
e impuro) com riqueza, saúde, descendência e vida longa (Lv 26). Pobreza,
doença e esterilidade eram sinais da maldição de Deus (Dt 30,15-18).
·
A
responsabilidade individual: Cada um seria julgado e punido por
Deus segundo seus “pecados” (Dt 24,16; 7,9-10; cf. Ez 18,1-32). A não
observância das leis, que justificava até a condenação à morte, em nome de
Deus, fortalecia o templo, seus rituais, a teologia da retribuição e a salvação
individual.
·
Moisés
como figura mítica e patrono da Lei (Lv 12,1): os teocratas
narraram o surgimento de Israel, o povo eleito, com a figura mítica e épica de
Moisés, consagrado como patrono da lei. Por
isso, na redação final do Dt, a figura central do livro, em termos literários, é
Moisés, como único mediador entre Javé e o povo: Dt contém os discursos de
Moisés e suas últimas palavras, exortando o povo à fidelidade a Javé, e
finalmente a sua morte (Dt 34).
Assim
o conjunto do livro do Deuteronômio pretende ser um apelo à conversão ao Deus
oficial, único e poderoso, à sua lei do puro e do impuro, e à unidade do povo
eleito, Israel, na sociedade teocrática de Neemias e Esdras.
A
REDAÇÃO EXÍLICA E A PÓS-EXÍLICA: REVISÃO DE Dt 4,44-28,68 E AMPLIAÇÃO: Dt 1,1-4,43,
introdução geral; 28,69-30,20, conclusão geral; 31,1-34,12, apêndice
O livro do Deuteronômio exalta a fidelidade à lei de Deus.
Foi escrito em épocas e sob contextos diferentes. Contém leis e ensinamentos em
diversos períodos da história do povo de Israel. Algumas leis são do período
tribal, outras da monarquia; estiveram a serviço de diferentes reinados e, por
fim, a serviço do templo. Texto instigante, é um permanente convite para
refletirmos a importância da lei em nossas vida e para questionarmos se a lei
está a serviço da vida dos pobres ou dos poderosos. Eis aqui as principais
mensagens do Dt para a espiritualidade e pastoral bíblica de hoje:
Primeira mensagem: Deus ouve o clamor do povo oprimido
e o liberta (Dt 26,4-11). É preciso manter viva a memória de uma divindade
sensível à realidade de sofrimento e opressão do seu povo. Um Deus que desce e
liberta o seu povo do opressor. A memória do êxodo do Egito está no coração da
fé de Israel. Trata-se de uma memória sagrada que fortalece e anima o povo nos
diferentes períodos de sua história. Renovemos a certeza de que Deus continua
caminhando com o seu povo. É Deus conosco!
Segunda mensagem: vida digna é direito de todas as
pessoas (Dt 24,10-22). Algumas leis sociais presentes no Deuteronômio reforçam
os direitos fundamentais dos pobres. A lembrança da escravidão do Egito e da
libertação deve impulsionar o compromisso com a prática da solidariedade para com
as pessoas necessitadas. As desigualdades sociais são frutos de estruturas
injustas, contrárias ao projeto de Deus. Que a nossa fé nos motive nossa busca de
justiça, especialmente para as pessoas menos favorecidas.
Terceira mensagem: a
centralização das festas comunitárias é opressora (Dt 16,1-8). Páscoa (pesah),
festa anual dos pastores nômades, foi associada à saída da escravidão para a
liberdade e celebrada nas casas, pelos anciãos para fortalecer a solidariedade
e a união. Na monarquia, a festa da Páscoa foi centralizada no templo de
Jerusalém, impedindo a participação de muitas pessoas, especialmente dos
pobres. Que o Deus da vida nos ajude a entender que os processos de
centralização não são libertadores.
Quarta mensagem: os crimes dos governantes provocam
crise e sofrimento do povo (Dt 17,14-20). Um encontro para refletir que uma
autoridade que abusa do poder é contrária ao projeto de Deus. A liderança
cristã tem que espelhar-se na maneira de agir proposta no modelo do servo: para
o serviço da justiça e na total contramão da violência. Para ser rei, é preciso
ser irmão. O poder legítimo de uma liderança, política ou religiosa, é
destinado ao serviço e à promoção da vida.
Quinta mensagem: é possível acreditar em um Deus ciumento
e vingativo? (Dt 13,7-12). A experiência de um Deus sensível à realidade de
injustiça, que vê e ouve o clamor das pessoas oprimidas, é a base da fé do povo
de Israel. Essa divindade foi oficializada e colocada a serviço do poder, e
manda matar quem cultua outras divindades. É preciso criar consciência de que
Deus é Amor e a verdadeira religião é aquela que nos torna pessoas melhores.
O livro do Deuteronômio é uma colcha de retalhos costurada
com tecidos de diferentes períodos. Alguns têm as cores da vida do povo das
aldeias e outros, as cores da monarquia ou da teocracia. Como pessoas cristãs,
somos chamadas a ler esse livro e a descobrir nas entrelinhas a aliança de amor
existente entre Deus e o povo. Uma aliança válida para todos os tempos.