sexta-feira, 8 de outubro de 2021

4. O evangelho de Jesus Cristo crucificado: "É para a liberdade que Cristo nos libertou" (Gl 5,1)


O EVANGELHO DE JESUS CRISTO CRUCIFICADO: “É PARA A LIBERDADE QUE CRISTO NOS LIBERTOU” (Gl 5,1)

Entendendo a carta aos Gálatas

Shigeyuki Nakanose, svd

Maria Antônia Marques

 

 

Vocês sabem que foi por causa de uma doença física que lhes anunciei o evangelho pela primeira vez. E apesar de minha carne ter sido para vocês uma provação, vocês não me desprezaram nem rejeitaram. Pelo contrário, me receberam como a um anjo de Deus, como a Cristo Jesus. Onde foi parar a alegria que tinham? Pois eu sou testemunha disto: se fosse possível, vocês arrancariam os próprios olhos e os dariam a mim. Será que me tornei inimigo de vocês, por lhes dizer a verdade? (4,13-16).[1]

 

Recordando o modo inusitado do nascimento das “igrejas da Galácia” (1,2), Paulo lhes escreveuma carta direta e personalizada, para que elas se esforcem por clarificar as ideias perturbadas pela intervenção do grupo judaizante evoltem aviver na liberdade, igualdade e unidade à luz da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Por volta do ano 53/54 d.C., as comunidades gálatas entraram em crise. Os convertidos gálatas, não judeus (“gentios" ou estrangeiros) em sua maioria, foram “enfeitiçados” pelo grupo de tendência judaizante, isto é, o modo de viver como judeus segundo a cultura e os costumes judaicos, e caíram sob o jugo da Lei: “Ó gálatas sem juízo! Quem foi que os enfeitiçou, a vocês que tinham diante dos olhos os traços bem claros de Jesus Cristo crucificado?Quero saber somente isto de vocês: foi pelas obras da Lei que vocês receberam o Espírito, ou foi pela aceitação da fé?” (3,1-2).

O grupo judaizante radical (1,7; 4,17; 5,7-12; 6,13) tentou impor aos convertidos gálatas a circuncisão – que ocupava lugar central no judaísmo oficial, o sinal da aliança com Deus Javé – como meio de alcançar a salvação, e atacou o evangelho e a prática pastoral de Paulo: “Não existe outro evangelho. No entanto, alguns estão deixando vocês confusos, querendo distorcer o evangelho de Cristo” (1,7).

No dizer de Paulo, o grupo judaizante radical anuncia outro evangelho, baseado na justiça pela observância da Lei, provocando e justificando a segregação e a desigualdade nas comunidades gálatas e até a escravidão no mundo greco-romano. O grupo desvirtuao evangelho baseado na justiça que vem da fé no amor e graça de Cristo Jesus crucificado: “Nós, com efeito, aguardamos ansiosamente no Espírito a esperança daquela justiça que vem da fé. Pois, em Cristo Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm valor algum, e sim a fé que age através do amor” (5,5-6).

            A discriminação, adesigualdade e amarginalização das pessoas são intoleráveis para a “verdade do evangelho” (2,5), segundo a liturgia batismal, citada por Paulo:“não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um só em Cristo Jesus” (3,28). Afinal, quem é Paulo que prega a unidade das pessoas sem as barreiras racial, social e de gênero?

 

Conhecendo Paulo

 

Considero tudo como perda, diante do bem superior que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado nele. E isso, não tenho mais como justiça minha aquela que vem da Lei, mas aquela que vem de Deus e se baseia na fé (Fl 3,8-9).

 

            Paulo, “circuncidado no oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus” (Fl 3,5), aderiu à fé e ao amor de Cristo Jesus. O judeu,“perseguidorda Igreja” (Fl 3,6; cf. Gl 1,13),transformou-se em seguidor de Jesus crucificado.Ele passou a pregara mensagem da justificação pela obra da fé, pelo esforço do amor e pela constância da esperança no Senhor Jesus Cristo (cf. 1Ts 1,3).

Segundo a prática religiosa da sinagoga do seu tempo, Paulo, um judeu fariseu, bastante cônscio de seu trabalho em observar a Lei de Moisés, pregava a salvação pela observância da lei da pureza, a obra salvífica que era justificada pela fé no Deus poderoso e castigador (cf. Dt 30,15-18) e argumentada pela teologia da retribuição – que Deus retribuía saúde, riqueza e vida longa para quem observava a Lei, com a exigência dos sacrifícios de purificação, o pagamentodos dízimos etc. (cf. Lv 26; Dt 28; Ml 3,6-12). Dessa forma, seria possível manipular Deus conforme a justiça pela observância da Lei. Observa a Lei, eDeus é obrigadoa retribuir ea ajudar a pessoa “justa”.    

Como fariseu, Paulo desprezava e discriminava os pobres, os doentes e os estrangeiros como impuros, pois eleseram vistos como pessoas queinfringiama Lei. Em sua prática da Lei, Paulo tornou-se perseguidor do grupo dos judeus helenistas crentes em Jesus de Nazaré,acusado deestar pregando e perturbandoa ordem religiosa (Templo e Lei) de Jerusalém, que justificava o poder e as riquezas dos governantesjudaicos (cf. At 6,8-7,60). Paulo, um fariseu irrepreensível, um homem cheio de si e autossuficiente: “Quanto à Lei, fariseu;quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que há na Lei, sem reprovação” (Fl 3, 5-6; cf. 1Cor 15,9).

            No entanto, ele mudou a sua vida.Graças ao contato com a vivência comunitária e fraterna dosseguidores e das seguidoras de Jesus que sofriam perseguição(cf. At 9,10-19), Paulo, aos poucos, foi sendo tocado pelo amor gratuito de Jesus de Nazaré, ocrucificado, que seria “escândalo” para judeus (cf. Dt 21,22-23). Ele começou a acreditar que Jesus crucificado por Pilatosera o Messias de Javé, o Filho de Deus, como havia anunciado o Segundo Isaías, na forma do servo sofredor (cf. Is 42,1-9; 52,13-53,12). Ele descobriu que o projeto da vida foi manifestado na cruz de Jesus como graça de Deus, e não pela observância da Lei.

Na prática, Paulo abandonou o grupo dos judeus fariseus, comoseu modo legalista e ritualista de ver Deus, a Escritura, as pessoas e as coisas, e ingressou no movimento de Jesus Cristo crucificado, praticando e experimentando no dia a dia o amor gratuito e incondicional de Deus, sobretudo para com as pessoas enfraquecidas (cf. Is 52,1-12; 53,11; 61,1-2). Em seu longo processode transformação e aprendizagem (1,15-18), ele começou a pregar a salvação pela prática do amor, a obra salvífica justificada pela fé na graça de Deus misericordioso, Pai e Mãe (cf. Os 11,1-4; 1Ts 2,1-12), ou seja, a teologia da gratuidade (cf. Jn 4; Rm 5,1-2). 

No trabalho missionário, Paulopregou e experimentou o evangelho que foi manifestado na cruz de Jesus Cristo, na qual Deus Pai manifestou o seu amor gratuito oposto à cobiça e ganância dos poderosos – a ação redentora de Deus na história (cf. Fl 2,6-11).Ao pregar e praticar o evangelho do amor gratuito para com os pobres, possivelmente Paulo estava se contrapondo apregações rivais, como o evangelho do imperador romanoque anunciava todos os seus projetos e vitórias, tudo o que era do interesse do impériocomo uma “Boa Nova” para o povo. Como pregador judeu, Pauloenfrentoua oposição do judaísmo tradicional, baseado na observância da Lei (cf. 1Ts 1,4-10; Fl 1,12-30).

            Sendo um judeu formado na cultura greco-romana – judeu helenista como Estevão e Filipe (cf. At 6,1-6) –, Paulo se formou nas comunidades helenistas de Damasco (cf. 1,17; 2Cor 11,32) e iniciou o seu trabalho missionário na comunidade de Antioquia da Síria (cf. At 11,19-30), em sua maioria judeus helenistas e não judeus, uma comunidadede língua grega, mais aberta à realidade multicultural e multirracialde Antioquia, a terceira maior cidade do Império Romano, depois de Roma e Alexandria. Nela a circuncisão e as leis alimentares judaicas não eram impostas aos seguidores gentios de Jesus Cristo.

            Com o tempo, a comunidade de Antioquia, com tal prática,entrou em conflito com a “igreja mãe de Jerusalém” (1,18-24), formada em sua maioria por judeus que acreditavam em Jesus como o Messias prometido, mas assumia uma prática mais tradicional,pregando um evangelho subordinado àstradições judaicas. A postura dos judaizantesera clara: os gentios poderiam participar das promessas feitas por Deus ao povo de Israel desde que estivessem dispostos a observar os preceitos da Lei.       

O conflitoem torno da Leiresultou na realização da primeira assembleia em Jerusalém,por volta do ano 49, cuja discussão foi sobre a imposição da circuncisão e de outros costumes judaicos aos gentiosque seguiam Jesus (2,1-10; cf. At 15). Apesar da dura oposição dos “falsos irmãos” (2,4), um grupo judaizante radical na igreja de Jerusalém, Paulo defendeu a prática missionária segundo a “verdade do evangelho” (2,3-5), e selou acordo com os apóstolos de Jerusalém. Eles consideravam sua missão restrita aos circuncidados, mas mesmo assim reconheciam e apoiavam a missão do grupo de Paulo “em favor dos gentios” (2,7-10).

            Entretanto, os “falsos irmãos” (cf. At 15,1.5), acreditavam na necessidade de todos os seguidores de Jesus se tornarem judeus e exigiam delesaobservância da Lei em sua totalidade, rejeitando o acordo firmado na assembleia de Jerusalém. Historicamente, a influência desses judaizantes radicais chegou à Macedônia, à Grécia e à Ásia Menor, causando conflito com a missão de Paulo. 

            Após a assembleia, Paulo desempenhou com maior vigor a sua missão para com os gentios. Na segunda viagem, durante 49-52 d.C., o grupo de Paulo realizou a missão em meio aos gentios da Ásia Menor, da Macedônia e da Grécia, fundando as comunidades na Galácia, Filipos, Tessalônica, Corinto etc. (At 15,36-18,23), comunidades compostas por judeus e gentios que tentavam viver a irmandade em nome de Jesus Cristo crucificado.

            Com o tempo, porém, as comunidades de seguidores e seguidoras de Jesuscomeçaram a enfrentarvários problemas: a oposição dos judeus, os “falsos circuncidados”, em Filipos (Fl 3,2); perseguições dos judeus e governantes romanos contraas pessoas que seguiamJesusem Tessalônica (cf. 1Ts 1,2-2,12); conflitos internos de vários grupos em Corinto,entre outros (cf. 1Cor 1,10-16). As comunidades de Corinto, por exemplo, já estavam apresentando o primeiro sinal do conflitoprovocado pelos grupos “espirituais” judeu-cristãos, que separavam a fé em Jesus Cristo da vida prática (cf. 1Cor 2; Jd 19; 1Jo 4,1-6). Era a enorme diversidade do cristianismo do século I, que seguirá muito forte ainda nos séculos seguintes, e que, de certa maneira continua ainda hoje.

As comunidades gálatas também não escaparam da crise provocada pela diversidade. Nelas, por volta do ano 53/54 d.C., surgiram os conflitos provocados pelos dois grupos principais: por um lado, o grupo “judaizante” tentava submeter à circuncisão e aos costumes judaicos os gentios que abraçaram a mensagem de Jesus, suscitando a segregação e a desunião nas comunidades (cf. 3,1-5,12); e por outro, o grupo “liberal” exagerava a liberdade cristã, desrespeitando qualquer mandamento e criando uma crise ética (cf. 5,13-26). De certa forma, essa situação crítica das comunidades gálatas era marcada pela realidade particular do povo da Galácia.

 

Conhecendo a Galácia

 

O nome Galácia deriva dos gauleses (gálatas), descendentes de antigos imigrantes celtas, provenientes do território da Gália (França, Bélgica, Itália etc.), que invadiram, em 279-277 a.C., o centro-norte da Ásia Menor (a região entre a Capadócia e o Ponto). Os gálatas foram subjugados pelo Império Romano em 189 a.C. Após um longo período de vassalagem, o reino gálata passou a ser a província romana de Gálatas, com a capital Ancira (hoje Ancara), em 25 a.C., ficando, desde então, sob a dominação da tirania romana.

Como província romana, o império reorganizou a Galácia propriamente dita, anexando-lheo centro-sul da Ásia Menor: a região da Frígia e Pisídia (Antioquia daPisídia, Icônio, Listra e Derbe, cidades refundadas como colônias romanas). Por isso, no tempo de Paulo, a Galácia era uma província do Império Romano na Anatólia Central (moderna Turquia): o centro-norte e o centro-sul da Ásia Menor. Entretanto, havia diferença entre as duas regiões: de um lado, a maioria dos habitantes do norte, chamados gálatas, era de etnia celta e falava a língua gálata, e, de outro, no sul da Galácia, com as cidades helenizadas e romanizadas, a maioria dos habitantes, também chamados gálatas, não era celta, mas umapopulação mista: romanos, gregos e judeus. Existiam várias colônias judaicasna região, como também sinagogas.

            Quanto à vida do povo, a Galácia era basicamente uma província rural agropecuária: produção de cereais, vinhos e pequenos rebanhos. A produção de lã era conhecida e trazia riqueza à província. Sabe-se que as enormes fazendas de ovelhas ocupavam grande parte da área central e meridional da Galácia e que a maioria das terras pertencia ao Império Romano. Como práxis do império, a riqueza da produção da região beneficiava a elite local, e era levada a Roma pelos “mercadores da terra” para enriquecer a autoridade imperial (cf. Ap 18). A maioria da populaçãoestava submetida à escravidão do império e sofria, vivendo na miséria e sofrendo espoliação e violência dos governantes.

Com o longo processo de romanização, a sociedade gálata era marcada pelo sistema de escravatura. O duro trabalho nas fazendas de ovelhas, por exemplo, empobrecia e enfraquecia o povo. O sofrimento do povo aumentava ainda mais com a dominação cotidiana do império. Para além da brutalidade e violência do exército e da cobrança sistemática do imposto e do monopólio do comércio, a legitimação do poder imperial era feita pela implantação da religião e cultura promovidas pelo Império Romano.

            Até agora, foram escavados três templos júlio-claudianosna Galácia: Ancira, Pessinuntee Antioquia da Pisídia. Os templos, construídos no tempo de Augusto (27 a.C-14 d.C.) ou Tibério (14-37 d.C), eram dedicados ao culto imperial, para implantar e fortalecer o domínio do império via poder e carisma do imperador humano,que era considerado divino. No culto, o evangelho “Boa Nova” de César Augusto, o senhor do império e da terra, era proclamado exaltando o império e o imperador por estabelecerem na terra a paz e a salvação.

            Em todas as áreas controladas por Roma, a Boa Nova do imperador devia ditar e moldar o cotidiano do povo dominado. Sua divulgação era muito eficaz. O evangelho imperial percorria todo o império através da infraestrutura bem desenvolvida – rede de hospedarias, correios, rotas e estradas – com a finalidade de consolidar o mundo num só império. Mas as mesmas estradas, Paulo percorria para levar o evangelho de Jesus Cristo crucificado,introduzindo um novo sistema de relações capaz de mudar a relação humana. Ao vínculo de senhor/escravo podia sobrepor-se o da irmandade e o da liberdade, que foi proclamado nas comunidades da Galácia.

 

Conhecendo as comunidades gálatas

           

Durante a primeira viagem missionária (46-48 d.C.), Paulo e Barnabé provavelmente percorreram o sul da Galácia, a região habitada pelos romanos, gregos e judeus, passando por Icônio, Lístra e Derbe, entre outras (At 13,50-14,28). Eles realizaram a missão entre os judeus e os simpatizantes gentios nas sinagogas por onde passaram, fundando várias comunidades. Paulo voltou para lá durante a sua segunda viagem (49-52 d.C.; cf. At 16,1-8)e percorreu também o norte da Galácia (a região em torno das cidades de Ancira e Pessinunte; cf. At 16,6), evangelizando os gálatas propriamente ditos. Na terceira viagem (53-57 d.C.), ele passou de novo pela Galácia e pela Frígia (cf. At 18,23).

            Por volta do ano 50 d.C., nessa região do norte da Galácia, as comunidades de seguidores e seguidoras de Jesus foram fundadas numa circunstância incomum: “Vocês sabem que foi por causa de uma doença física que lhes anuncieio evangelho pela primeira vez” (4,13). No meio dos gálatas, o “evangelho de Cristo” (1,7) havia causadograndeentusiasmo, pois a irmandade pregada em nome de Jesus Cristo crucificado suscitou o sonho de vida e liberdade para quem vivia sob o jugo da escravidão do império. Porém, o entusiasmo durou pouco. Logo depois da segunda visita de Paulo,essas comunidades “abandonaram tão depressa a graça de Cristo”(1,6) e caíram na escravidão da Lei de Moisés, perdendo a irmandade e a unidade. E, para piorar a situação, alguns membros inclusive contestaram a autoridade de Paulo e seu evangelho (1,7-10).

            Possivelmente, durante a longa permanência de dois anos e meio em Éfeso (53-55 d.C.), uma espécie de base missionária(cf. At 18,18-21,1), Paulorecebeu notícias de um ataque contra ele e seu evangelho em meio às comunidades da Galácia que estavamem crise. A carta aos Gálatas, então, foi escrita, com muita emoção, como uma resposta de Paulo nesse contexto conturbado[2], por isso, ela revela a discussão e a situação pelas quais as comunidades gálatas estavam passando e, ao mesmo tempo, descreve as características delas em relação a Paulo:

a)    Os membros das comunidades gálatas eram gentios que só conheceram o Deus judeu e a mensagem de Jesus depois de sua conversão de vida (4,8-9; 5,2-3; 6,12).

b)    Comunidadescom a língua gálata: “Foi desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado” (3,1). Provavelmente, Paulo teve de recorrer a desenhos para se comunicar, com muito amor e esforço, trabalhandoduramente (4,11).

c)    As comunidades acolheram Paulo, um enfermo judeu, sem discriminação (4,13-14). O laço afetivo das comunidades com Paulo era tão forte que fez Paulo declarar: “se fosse possível, vocês arrancariam os próprios olhos e os dariam a mim” (4,15).

d)    Paulo anunciara a “cruz de Jesus Cristo” (3,1) na qual a graça de Deus foi dada: “Não torno inútil a graça de Deus. Porque, se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu inutilmente” (2,21). Por graça, os convertidos gálatas tornaram-se pessoas capazes de amar e de se pôra serviço uns dos outros (5,13).

e)    No batismo, o evangelho de Jesus Cristo crucificado com seu amor gratuito, foi assumido pelos gentios pobres sofridos como fonte de liberdade, irmandade e igualdade em ummundo escravagista (3,23-29).

f)     O ponto principal de discussão e de crise é “outro evangelho” que “distorce o evangelho de Cristo” (1,7). O grupo judaizante radical insiste: o seguidor e a seguidora de Jesusdevem submeter-se à prática de todas as leis judaicas, como a circuncisão e as leis alimentares, para alcançar a salvação (2,11-21). Mas dessa forma o grupo agitador estápregando outro evangelho e levando as comunidades ao jugo da Lei, provocandosegregação e desunião (2,11-21).

g)    Os convertidos gálatas estavam prestes a se submeter à Lei de Moisés (4,1) e a trair a amizade e alealdade para com Paulo, abandonando o verdadeiro evangelho (1,6) e decaindo da graça (5,4). Diante disso, ele afirma: “Meus filhos, por vocês eu sofro de novo as dores de parto, até que Cristo se forme em vocês” (4,19). É a situação de dificuldades e sofrimentos.

h)   Alguns membros, convertidos gálatas, se fizeram circuncidar (5,2-4) e exerciam pressões sobre os outros membros das comunidades (6,13).

i)     Havia também o grupo helenizado com o espírito da busca desenfreada por bens, poder e prazer, que radicalizou a liberdade, transformando-a em libertinagem, causando o problema ético e aumentando as tensões internas (5,13-24).   

j)      Os opositoresnegaram inclusivea autoridade do apóstolo Paulo e seu evangelho (1,1-5.7-10).

k)    Diante da situação real de perder as comunidades “amadas”, Paulo, indignado e revoltado, chegou a dizer: “Ó gálatas sem juízo! Quem foi que os enfeitiçou, a vocês que tinham diante dos olhos os traços bem claros de Jesus Cristo crucificado?” (3,1); “Aqueles demonstram interesse por vocês, mas a intenção deles não é boa. Querem separá-los de mim, para que vocês se interessem por eles” (4,17) “Que se mutilemde uma vez aqueles que estão perturbando vocês!” (5,12).

 

Informado da grave ameaça para a fé em Jesus Cristo crucificado, seu verdadeiro evangelho e a prática do amor, igualdade e unidade, bem como da acusação contra sua condição do apóstolo, Paulo escreveu a carta aos Gálatas, cheia de raiva e emoção, provavelmente de Éfeso, entre54/55 d.C.

 

Conhecendo a carta aos Gálatas

 

A carta aos Gálatasémais profundamente marcada pelo tom duro e polêmico do que qualquer outra carta, e é a única carta sem a costumeira ação de graçasnas saudações inicial e final. Ela contém cinco argumentos usados por Paulo contra os adversários: histórico, teológico, exegético, batismal e emocional.

Eis um possível esquema para a carta:

a)    Introdução– 1,1-10: Apresentação do tema “o Evangelho de Cristo”, baseado na graça de Deus.

b)    Primeira parte – 1,11-2,21: Relato autobiográfico e histórico.

c)    Segunda parte – 3,1-5,12: Argumento contra os adversários.

d)    Terceira parte– 5,13-6,10: Exortação ética – liberdade e caridade.

e)    Conclusão– 6,11-18: Severa advertência contra o grupo judaizante radical.

 

Conhecendo os conteúdos específicos

            Convencido do perigo que representava para o Evangelho de Jesus Cristo crucificado, Paulo não poupou críticas fortes contra os grupos formados pelos judaizantes e helenizados radicais, que estavam desvirtuando o valor salvífico do amor gratuito de Jesus Cristo crucificado, a manifestação da graça de Deus. Ele procurou mostrar os conteúdos do verdadeiro Evangelho com base na experiência e na Escritura:

1) Pregar e praticar o Evangelho de Jesus Cristo crucificado (Gl 1,7): o verdadeiro evangelho (Gl 2,5.14) é a própria pessoa de Jesus de Nazaré, que pregou e praticou a justiça e deu sua vida na cruz, por puro amor ao próximo (Gl 1,3-5). A fé na cruz de Jesus é fonte da liberdade, da irmandade, da vida, porque é na cruz de Jesus de Nazaré, que Deus Pai manifestou sua graça, seu amor primeiro e gratuito.

2) Ser herdeiro da promessa de Abraão pela fé em Jesus Cristo crucificado (Gl 3,6-18): o fato de Jesus Cristo – que conviveu com os pecadores e morreu na cruz por amor ao próximo – ser reconhecido como o Messias sofredor e o Filho de Deus (Gl 4,4), é a mensagem essencial de que o Deus da promessa a Abraão (Gn 15,4-8; 18,17-18) reconhece a pessoa não em virtude das obras da Lei, mas de sua prática do amor ao próximo. A fé no Messias sofredor abre a salvação a todos os povos, sem o pré-requisito do cumprimento da Lei, como a circuncisão e as leis alimentares (Gl 2,11-14).   

3) Ter liberdade em Jesus Cristo crucificado (Gl 5,1): no Espírito (o poder do amor gratuito) de Jesus Cristo crucificado, a pessoa torna-se “nova criatura” (Gl 6,15), fica liberta de qualquer lei e de qualquer diferença que possa privilegiar a uns e marginalizar a outros (Gl 3,28).

4) Viver segundo o Espírito (Gl 5,5): quem caminha na fé e no amor do Crucificado é acompanhado pela força criadora, profética, sapiencial e libertadora do Espírito para viver de modo como Jesus viveu: na liberdade, na justiça e no amor, criando irmandade, paz e esperança.

5) Carregar o peso uns dos outros (Gl 6,2):  a verdadeira liberdade cristã é fruto do Espírito de Deus, que leva à vida de caridade, justiça e fraternidade, sobretudo de amor-serviço aos outros (Gl 5,13-6,10).

6) Evangelizar com base na realidade (Gl 4,12): ao contrário do grupo judaizante, Paulo considerou e respeitou os anseios por liberdade e igualdade do povo sofrido e escravizado, formando comunidades de fraternidade sem a imposição das leis e costumes judaicos.

7) Evangelizar junto com os pobres (Gl 2,10): Paulo evangelizou as nações, pondo-se ao lado dos pobres, mergulhando no mundo deles, carregando os fardos do trabalho (Gl 6,2), organizando comunidades de partilha e de fraternidade junto com os pobres (1Cor 4,9-13).

8) Carregar as marcas de Jesus que significam as cicatrizes dos maus-tratos sofridos e suportados pelo Nazareno (Gl 6,14.17; cf. 2Cor 4,10): quem assume o Evangelho de Jesus Cristo crucificado, seu amor gratuito e o espírito da liberdade, será perseguido e maltratado no mundo do legalismo judaico e da escravização do Império. As pessoas que seguem Jesus, porém, mesmo perseguidas, devem gloriar-se na cruz de Jesus Cristo, porque é dela que nasce “o poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1,24), para construir o mundo da partilha e da fraternidade: o Reino antecipado de Deus. 

 

Essas são algumas das principais convicções que orientam e animam Paulo em sua missão. As certezas que podem ser encontradas ao longo da carta aos Gálatas amadureceram aos poucos, à luz de seu próprio trabalho missionário e pastoral, guiado pela reflexão sobre as palavras, ações e vida de Jesus à luz da Escritura, e também à luz da realidade do povo sofrido, dos empobrecidos, marginalizados e escravos como os gálatas.

No contexto do imperialismo romano e da religião legalista e ritualista do judaísmo oficial, Paulo pregou Jesus crucificado e ressuscitado e ousou caminhar na contracorrente, com a proposta do amor gratuito e da justiça do “Servo sofredor”. Quase dois mil anos se passaram, mas o imperialismo continua encarnando em muitas “feras”, devorando pessoas inocentes mediante guerras, ditaduras brutais, trabalhos em condição de escravidão ou semiescravidão, economia selvagem, fomes, violências. E muitas igrejas, com seu Cristo triunfalista, legalista e ritualista, servem para conservar as feras do presente.

 

 

Mensagens principais

 

            A carta aos gálatas tem como tema central a defesa do evangelho do amor gratuito de Deus, manifestado em Jesus Cristo crucificado. Diante do grupo judaizante radical que pregava a necessidade da Lei para a Salvação, Paulo insiste na ação amorosa: “o homem não é justificado pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo. E nós cremos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da Lei. Porque, pelas obras da Lei, ninguém será justificado” (2,16). O importante é a fé que age pelo amor, e não o cumprimento de normas e ritos.

            Esta carta continua questionando o nosso seguimento de Jesus Cristo: a nossa vivência do evangelho é baseada na graça e no Espírito ou no cumprimento de ritos e preceitos? Uma pergunta que precisamos sempre nos fazer. Com estes encontros, queremos mergulhar no estudo e na reflexão da carta aos Gálatas, buscando luzes para iluminar nossa caminhada pessoal e comunitária. Paulo insiste que a vida no Espírito é uma vivência livre, tendo como fruto o amor e seus desdobramentos, que sempre visam o bem do próximo. Eis os principais textos e mensagens para nossa caminhada cristã hoje:

 

            Primeiro: O evangelho de Jesus Cristo Crucificado (2,11-21). As primeiras comunidades que seguiam Jesus enfrentaram muitas dificuldades em romper as barreiras impostas pela Lei judaica, que separavam os judeus dos não judeus. O seguimento de Jesus Cristo exige a superação de toda e qualquer barreira que discrimina e marginaliza uma pessoa. Revendo o passado, vamos olhar a nossa prática para identificar o que nos impede de viver uma vida conforme as exigências do evangelho e reafirmar nosso compromisso com as pessoas crucificadas de hoje.

            Segundo: Todos somos um em Cristo Jesus (3,1-14.26-29). É importante compreender que a fé nos torna filhas e filhos de Deus e que Nele todos somos um. Cada povo é diferente, mas as diferenças não justificam nenhuma forma de separação. Vamos refletir sobre a unidade que somos chamadas e chamados a vivenciar a partir de Cristo Jesus. Como pessoas batizadas, a nossa vocação é deixar que Cristo viva em nós, ou seja, olhar a realidade com os olhos D’Ele e romper as barreiras social, religiosa, cultural e de gênero.

            Terceiro: Viver o amor e a ternura na missão (4,12-20). Paulo vivenciou uma experiência profunda de acolhimento nas comunidades dos gálatas apesar de sua doença, o que favoreceu o amor e a amizade entre eles. Em nossas atividades missionárias, é fundamental criar e aprofundar laços de amizade e de afeição com as pessoas com as quais entramos em contato. A vivência de verdadeiras relações fraternas na missão fortalece o compromisso com a construção do Reino de Deus.

            Quarto: O viver em Cristo nos torna livres (5,1-12). Como pessoas cristãs, recebemos o Espírito de Deus como força criadora, profética, sapiencial e libertadora para viver como Jesus viveu. As comunidades cristãs têm a missão de vivenciar a liberdade e uma fé que age através do amor (5,7). A vida cristã deve ser orientada pela esperança, justiça e solidariedade. O excessivo apego a normas, ritos e regras pode nos afastar do seguimento de Jesus de Nazaré.

            Quinto: Livres para amar e servir (5,13-6,10). Para não deixar dúvidas sobre a identidade cristã, Paulo apresenta uma série de exortações às comunidades dos gálatas e reforça que a vocação cristã é para a liberdade, o que implica viver segundo o Espírito. Aquele ou aquela que vive segundo as obras da carne provoca rupturas consigo, com Deus e com o próximo. A vida segundo o Espírito é pautada pelo amor, que se expressa no serviço solidário para com todas as pessoas. Estas exortações continuam sendo atuais para nós e nossas comunidades.

 

            Que a leitura e a reflexão da carta aos Gálatas possam lançar novas luzes para a nossa vivência individual e comunitária. Deixemos ecoar em nossos corações os apelos para uma vida cuja marca seja o amor solidário para com todas as pessoas: “Não nos cansemos de fazer o bem” (6,9a).

 



[1] Importante: onde não estiver indicado o livro bíblico, a citação é da carta aos Gálatas. Os textos foram extraídos, em sua maioria, da Nova Bíblia Pastoral, São Paulo, 2015.

[2] Alguns pesquisadores têm proposto as comunidades do sul da Galácia como os destinatários da carta aos Gálatas, datando a carta por volta do ano 50, de Corinto. Esta discussão continua em aberto. 

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