O
EVANGELHO DE JESUS CRISTO CRUCIFICADO: “É PARA A LIBERDADE QUE CRISTO NOS
LIBERTOU” (Gl 5,1)
Entendendo
a carta aos Gálatas
Shigeyuki Nakanose, svd
Maria Antônia Marques
Vocês sabem que foi por causa de uma
doença física que lhes anunciei o evangelho pela primeira vez. E apesar de
minha carne ter sido para vocês uma provação, vocês não me desprezaram nem
rejeitaram. Pelo contrário, me receberam como a um anjo de Deus, como a Cristo
Jesus. Onde foi parar a alegria que tinham? Pois eu sou testemunha disto: se
fosse possível, vocês arrancariam os próprios olhos e os dariam a mim. Será que
me tornei inimigo de vocês, por lhes dizer a verdade? (4,13-16).[1]
Recordando o modo inusitado do nascimento das
“igrejas da Galácia” (1,2), Paulo lhes escreveuma
carta direta e personalizada, para que elas se esforcem por clarificar as ideias
perturbadas pela intervenção do grupo judaizante evoltem
aviver na liberdade, igualdade e unidade à luz da vida, morte e
ressurreição de Jesus Cristo.
Por volta do ano 53/54 d.C., as comunidades
gálatas entraram em crise. Os convertidos gálatas, não judeus (“gentios"
ou estrangeiros) em sua maioria, foram “enfeitiçados” pelo grupo de tendência
judaizante, isto é, o modo de viver como judeus segundo a cultura e os costumes
judaicos, e caíram sob o jugo da Lei: “Ó gálatas sem juízo! Quem foi que os
enfeitiçou, a vocês que tinham diante dos olhos os traços bem claros de Jesus
Cristo crucificado?Quero saber somente isto de
vocês: foi pelas obras da Lei que vocês receberam o Espírito, ou foi pela
aceitação da fé?” (3,1-2).
O grupo judaizante radical (1,7; 4,17; 5,7-12;
6,13) tentou impor aos convertidos gálatas a circuncisão – que ocupava lugar
central no judaísmo oficial, o sinal da aliança com Deus Javé – como meio de
alcançar a salvação, e atacou o evangelho e a prática pastoral de Paulo: “Não
existe outro evangelho. No entanto, alguns estão deixando vocês confusos,
querendo distorcer o evangelho de Cristo” (1,7).
No dizer de Paulo, o grupo judaizante radical
anuncia outro evangelho, baseado na justiça pela observância da Lei, provocando
e justificando a segregação e a desigualdade nas comunidades gálatas e até a
escravidão no mundo greco-romano. O grupo desvirtuao
evangelho baseado na justiça que vem da fé no amor e graça de Cristo Jesus
crucificado: “Nós, com efeito, aguardamos ansiosamente no Espírito a esperança
daquela justiça que vem da fé. Pois, em Cristo Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão
têm valor algum, e sim a fé que age através do amor” (5,5-6).
A discriminação, adesigualdade e amarginalização
das pessoas são intoleráveis para a “verdade do evangelho” (2,5), segundo a
liturgia batismal, citada por Paulo:“não há judeu nem grego, não há escravo nem
livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um só em Cristo Jesus” (3,28).
Afinal, quem é Paulo que prega a unidade das pessoas sem as barreiras racial,
social e de gênero?
Conhecendo Paulo
Considero tudo como perda, diante do bem
superior que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi
tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado nele.
E isso, não tenho mais como justiça minha aquela que vem da Lei, mas aquela que
vem de Deus e se baseia na fé (Fl 3,8-9).
Paulo, “circuncidado no oitavo dia,
da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus” (Fl 3,5), aderiu à fé e ao amor de Cristo Jesus. O judeu,“perseguidorda
Igreja” (Fl 3,6; cf. Gl 1,13),transformou-se em
seguidor de Jesus crucificado.Ele passou a pregara
mensagem da justificação pela obra da fé, pelo esforço do amor e pela constância da
esperança no Senhor Jesus Cristo (cf. 1Ts 1,3).
Segundo a prática religiosa da sinagoga do
seu tempo, Paulo, um judeu fariseu, bastante cônscio de seu trabalho em
observar a Lei de Moisés, pregava a salvação pela observância da lei da pureza,
a obra salvífica que era justificada pela fé no Deus poderoso e castigador (cf.
Dt 30,15-18) e argumentada pela teologia da retribuição – que Deus retribuía
saúde, riqueza e vida longa para quem observava a Lei, com a exigência dos
sacrifícios de purificação, o pagamentodos dízimos etc. (cf. Lv 26; Dt 28; Ml
3,6-12). Dessa forma, seria possível manipular Deus conforme a justiça pela
observância da Lei. Observa a Lei, eDeus é obrigadoa retribuir ea ajudar a
pessoa “justa”.
Como fariseu, Paulo desprezava e discriminava
os pobres, os doentes e os estrangeiros como impuros, pois eleseram vistos como
pessoas queinfringiama Lei. Em sua prática da Lei, Paulo tornou-se perseguidor do
grupo dos judeus helenistas crentes em Jesus de
Nazaré,acusado deestar pregando
e perturbandoa ordem religiosa (Templo e Lei) de Jerusalém, que justificava o
poder e as riquezas dos governantesjudaicos (cf. At 6,8-7,60). Paulo, um
fariseu irrepreensível, um homem cheio de si e autossuficiente: “Quanto
à Lei, fariseu;quanto ao zelo, perseguidor da
Igreja; quanto à justiça que há na Lei, sem reprovação” (Fl 3, 5-6; cf. 1Cor
15,9).
No entanto, ele mudou a sua vida.Graças ao contato com a vivência comunitária e fraterna dosseguidores
e das seguidoras de Jesus que sofriam perseguição(cf. At 9,10-19), Paulo, aos
poucos, foi sendo tocado pelo amor gratuito de Jesus de Nazaré, ocrucificado,
que seria “escândalo” para judeus (cf. Dt 21,22-23). Ele começou a acreditar
que Jesus crucificado por Pilatosera o Messias
de Javé, o Filho de Deus, como havia anunciado o Segundo Isaías, na forma do servo sofredor (cf. Is 42,1-9;
52,13-53,12). Ele descobriu que o projeto da vida foi manifestado na cruz de
Jesus como graça de Deus, e não pela
observância da Lei.
Na prática, Paulo abandonou o grupo dos
judeus fariseus, comoseu modo legalista e
ritualista de ver Deus, a Escritura, as pessoas e as coisas, e ingressou no
movimento de Jesus Cristo crucificado, praticando e experimentando no dia a dia
o amor gratuito e incondicional de Deus, sobretudo para com as pessoas
enfraquecidas (cf. Is 52,1-12; 53,11; 61,1-2). Em seu
longo processode transformação e aprendizagem (1,15-18), ele começou a
pregar a salvação pela prática do amor, a obra salvífica justificada pela fé na
graça de Deus misericordioso, Pai e Mãe (cf. Os 11,1-4; 1Ts 2,1-12), ou seja, a
teologia da gratuidade (cf. Jn 4; Rm 5,1-2).
No trabalho missionário, Paulopregou e
experimentou o evangelho que foi manifestado na cruz de Jesus Cristo, na qual
Deus Pai manifestou o seu amor gratuito oposto à cobiça e ganância dos
poderosos – a ação redentora de Deus na história (cf. Fl 2,6-11).Ao pregar e
praticar o evangelho do amor gratuito para com os pobres, possivelmente Paulo estava se contrapondo apregações rivais, como o
evangelho do imperador romanoque anunciava todos os seus projetos e vitórias,
tudo o que era do interesse do impériocomo uma “Boa Nova” para o povo. Como
pregador judeu, Pauloenfrentoua oposição do
judaísmo tradicional, baseado na observância da Lei (cf. 1Ts 1,4-10; Fl
1,12-30).
Sendo um judeu formado na cultura
greco-romana – judeu helenista como Estevão e Filipe (cf. At 6,1-6) –, Paulo se
formou nas comunidades helenistas de Damasco (cf. 1,17; 2Cor 11,32) e iniciou o
seu trabalho missionário na comunidade de Antioquia da Síria (cf. At 11,19-30),
em sua maioria judeus helenistas e não judeus, uma comunidadede língua grega, mais
aberta à realidade multicultural e multirracialde
Antioquia, a terceira maior cidade do Império Romano, depois de Roma e
Alexandria. Nela a circuncisão e as leis alimentares judaicas não eram impostas
aos seguidores gentios de Jesus Cristo.
Com o tempo, a comunidade de
Antioquia, com tal prática,entrou em conflito com a “igreja mãe de Jerusalém”
(1,18-24), formada em sua maioria por judeus que acreditavam em Jesus como o
Messias prometido, mas assumia uma prática mais
tradicional,pregando um evangelho subordinado àstradições judaicas. A postura
dos judaizantesera clara: os gentios poderiam participar das promessas
feitas por Deus ao povo de Israel desde que estivessem dispostos a observar os
preceitos da Lei.
O conflitoem torno da Leiresultou
na realização da primeira assembleia em Jerusalém,por volta do ano 49, cuja discussão
foi sobre a imposição da circuncisão e de outros costumes judaicos aos gentiosque seguiam Jesus (2,1-10; cf. At 15). Apesar
da dura oposição dos “falsos irmãos” (2,4), um grupo judaizante radical na
igreja de Jerusalém, Paulo defendeu a prática missionária segundo a “verdade do
evangelho” (2,3-5), e selou acordo com os apóstolos de Jerusalém. Eles
consideravam sua missão restrita aos circuncidados, mas mesmo assim reconheciam
e apoiavam a missão do grupo de Paulo “em favor dos gentios” (2,7-10).
Entretanto, os “falsos irmãos” (cf.
At 15,1.5), acreditavam na necessidade de todos os seguidores de Jesus se
tornarem judeus e exigiam delesaobservância
da Lei em sua totalidade, rejeitando o acordo firmado
na assembleia de Jerusalém. Historicamente, a influência desses judaizantes
radicais chegou à Macedônia, à Grécia e à Ásia Menor, causando conflito com a
missão de Paulo.
Após a assembleia, Paulo desempenhou
com maior vigor a sua missão para com os
gentios. Na segunda viagem, durante 49-52
d.C., o grupo de Paulo realizou a missão em meio aos gentios da Ásia Menor, da Macedônia
e da Grécia, fundando as comunidades na Galácia, Filipos, Tessalônica, Corinto
etc. (At 15,36-18,23), comunidades compostas
por judeus e gentios que tentavam viver a
irmandade em nome de Jesus Cristo crucificado.
Com o tempo, porém, as comunidades
de seguidores e seguidoras de Jesuscomeçaram a enfrentarvários problemas: a
oposição dos judeus, os “falsos circuncidados”, em Filipos (Fl 3,2); perseguições
dos judeus e governantes romanos contraas pessoas que
seguiamJesusem Tessalônica (cf. 1Ts 1,2-2,12); conflitos internos de
vários grupos em Corinto,entre outros (cf.
1Cor 1,10-16). As comunidades de Corinto, por exemplo, já estavam apresentando
o primeiro sinal do conflitoprovocado pelos grupos
“espirituais” judeu-cristãos, que separavam a fé em Jesus Cristo da vida
prática (cf. 1Cor 2; Jd 19; 1Jo 4,1-6). Era a enorme diversidade do
cristianismo do século I, que seguirá muito forte ainda nos séculos seguintes,
e que, de certa maneira continua ainda hoje.
As comunidades gálatas também não escaparam
da crise provocada pela diversidade. Nelas, por volta do ano 53/54 d.C., surgiram
os conflitos provocados pelos dois grupos
principais: por um lado, o grupo “judaizante” tentava submeter à circuncisão e
aos costumes judaicos os gentios que abraçaram a mensagem de Jesus, suscitando
a segregação e a desunião nas comunidades (cf. 3,1-5,12); e por outro, o grupo
“liberal” exagerava a liberdade cristã, desrespeitando qualquer mandamento e
criando uma crise ética (cf. 5,13-26). De
certa forma, essa situação crítica das comunidades gálatas era marcada pela
realidade particular do povo da Galácia.
Conhecendo a Galácia
O nome Galácia deriva dos gauleses (gálatas),
descendentes de antigos imigrantes celtas, provenientes do território da Gália
(França, Bélgica, Itália etc.), que invadiram, em 279-277 a.C., o centro-norte
da Ásia Menor (a região entre a Capadócia e o Ponto). Os gálatas foram
subjugados pelo Império Romano em 189 a.C. Após um longo período de vassalagem,
o reino gálata passou a ser a província romana de Gálatas, com a capital Ancira
(hoje Ancara), em 25 a.C., ficando, desde então, sob a dominação da tirania
romana.
Como província romana, o império reorganizou
a Galácia propriamente dita, anexando-lheo centro-sul da Ásia Menor: a região da
Frígia e Pisídia (Antioquia daPisídia, Icônio, Listra
e Derbe, cidades refundadas como colônias romanas).
Por isso, no tempo de Paulo, a Galácia era uma província do Império Romano na
Anatólia Central (moderna Turquia): o centro-norte e o centro-sul da Ásia
Menor. Entretanto, havia
diferença entre as duas regiões: de um lado, a maioria dos habitantes do
norte, chamados gálatas, era de etnia celta e falava a língua gálata, e, de
outro, no sul da Galácia, com as cidades helenizadas e romanizadas, a maioria
dos habitantes, também chamados gálatas, não era celta, mas umapopulação mista: romanos, gregos e judeus. Existiam várias colônias judaicasna região, como também sinagogas.
Quanto à vida do povo, a Galácia era
basicamente uma província rural agropecuária: produção de cereais, vinhos e
pequenos rebanhos. A produção de lã era conhecida e trazia
riqueza à província. Sabe-se que as enormes fazendas de ovelhas ocupavam
grande parte da área central e meridional da Galácia e que a maioria das terras
pertencia ao Império Romano. Como práxis do império,
a riqueza da produção da região beneficiava a elite local, e era levada a Roma
pelos “mercadores da terra” para enriquecer a autoridade imperial (cf. Ap 18).
A maioria da populaçãoestava submetida à escravidão do império e sofria,
vivendo na miséria e sofrendo espoliação e violência dos governantes.
Com o longo processo de romanização, a
sociedade gálata era marcada pelo sistema de escravatura. O duro trabalho nas
fazendas de ovelhas, por exemplo, empobrecia e enfraquecia o povo. O sofrimento
do povo aumentava ainda mais com a dominação cotidiana do império. Para além da
brutalidade e violência do exército e da cobrança sistemática do imposto e do
monopólio do comércio, a legitimação do poder imperial era feita pela implantação
da religião e cultura promovidas pelo Império Romano.
Até agora, foram escavados três
templos júlio-claudianosna Galácia: Ancira, Pessinuntee Antioquia da Pisídia. Os templos,
construídos no tempo de Augusto (27 a.C-14 d.C.) ou Tibério (14-37 d.C), eram
dedicados ao culto imperial, para implantar e fortalecer o domínio do império via poder e carisma do imperador humano,que era considerado divino. No
culto, o evangelho “Boa Nova” de César Augusto, o senhor do império e da terra, era proclamado exaltando o império
e o imperador por estabelecerem na terra a paz e a salvação.
Em todas as áreas controladas por
Roma, a Boa Nova do imperador devia ditar e moldar o cotidiano do povo
dominado. Sua divulgação era muito eficaz. O evangelho imperial percorria todo
o império através da infraestrutura bem desenvolvida – rede de hospedarias, correios, rotas e estradas – com a finalidade de
consolidar o mundo num só império. Mas as mesmas estradas, Paulo percorria para
levar o evangelho de Jesus Cristo crucificado,introduzindo
um novo sistema de relações capaz de mudar a
relação humana. Ao vínculo de senhor/escravo podia sobrepor-se o da irmandade e o da liberdade, que foi proclamado
nas comunidades da Galácia.
Conhecendo as comunidades
gálatas
Durante a primeira viagem missionária (46-48
d.C.), Paulo e Barnabé provavelmente percorreram o sul da Galácia, a região
habitada pelos romanos, gregos e judeus, passando por Icônio, Lístra e Derbe,
entre outras (At 13,50-14,28). Eles realizaram a missão entre os judeus e os
simpatizantes gentios nas sinagogas por onde passaram, fundando várias
comunidades. Paulo voltou para lá durante a sua segunda viagem (49-52 d.C.; cf.
At 16,1-8)e percorreu também o norte da Galácia (a região em torno das cidades
de Ancira e Pessinunte; cf. At 16,6), evangelizando os gálatas propriamente
ditos. Na terceira viagem (53-57 d.C.), ele passou de novo pela Galácia e pela
Frígia (cf. At 18,23).
Por volta do ano 50 d.C., nessa
região do norte da Galácia, as comunidades de seguidores e seguidoras de Jesus foram
fundadas numa circunstância incomum: “Vocês sabem que foi por causa de uma
doença física que lhes anuncieio evangelho
pela primeira vez” (4,13). No meio dos gálatas, o “evangelho de Cristo” (1,7)
havia causadograndeentusiasmo, pois a
irmandade pregada em nome de Jesus Cristo crucificado suscitou o sonho de vida
e liberdade para quem vivia sob o jugo da escravidão do império. Porém, o
entusiasmo durou pouco. Logo depois da segunda visita de Paulo,essas
comunidades “abandonaram tão depressa a graça de Cristo”(1,6) e caíram na
escravidão da Lei de Moisés, perdendo a irmandade e a unidade. E, para piorar a
situação, alguns membros inclusive contestaram a autoridade de Paulo e seu
evangelho (1,7-10).
Possivelmente, durante a longa
permanência de dois anos e meio em Éfeso (53-55 d.C.), uma espécie de base missionária(cf. At 18,18-21,1), Paulorecebeu notícias
de um ataque contra ele e seu evangelho em meio às comunidades da Galácia que estavamem crise. A carta aos Gálatas, então, foi escrita, com
muita emoção, como uma resposta de Paulo nesse contexto conturbado[2],
por isso, ela revela a discussão e a situação pelas quais as comunidades
gálatas estavam passando e, ao mesmo tempo, descreve as características delas em relação a Paulo:
a) Os membros das comunidades gálatas eram gentios que só conheceram
o Deus judeu e a mensagem de Jesus depois de sua conversão de vida (4,8-9;
5,2-3; 6,12).
b)
Comunidadescom a língua gálata: “Foi
desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado” (3,1). Provavelmente, Paulo teve
de recorrer a desenhos para se comunicar, com muito amor e esforço, trabalhandoduramente
(4,11).
c)
As comunidades acolheram Paulo,
um enfermo judeu, sem discriminação (4,13-14). O laço afetivo das comunidades
com Paulo era tão forte que fez Paulo declarar: “se fosse possível, vocês
arrancariam os próprios olhos e os dariam a mim” (4,15).
d)
Paulo anunciara a “cruz de Jesus
Cristo” (3,1) na qual a graça de Deus foi dada: “Não torno inútil a graça de
Deus. Porque, se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu inutilmente”
(2,21). Por graça, os convertidos gálatas tornaram-se pessoas capazes de amar e
de se pôra serviço uns dos outros (5,13).
e)
No batismo, o evangelho de Jesus
Cristo crucificado com seu amor gratuito, foi assumido pelos gentios pobres
sofridos como fonte de liberdade, irmandade e igualdade em ummundo escravagista
(3,23-29).
f)
O ponto principal de discussão e
de crise é “outro evangelho” que “distorce o evangelho de Cristo” (1,7). O grupo
judaizante radical insiste: o seguidor e a seguidora de Jesusdevem submeter-se
à prática de todas as leis judaicas, como a circuncisão e as leis alimentares,
para alcançar a salvação (2,11-21). Mas dessa forma o grupo agitador estápregando
outro evangelho e levando as comunidades ao jugo da Lei, provocandosegregação e
desunião (2,11-21).
g)
Os convertidos gálatas estavam
prestes a se submeter à Lei de Moisés (4,1) e a trair a amizade e alealdade
para com Paulo, abandonando o verdadeiro evangelho (1,6) e decaindo da graça
(5,4). Diante disso, ele afirma: “Meus filhos, por
vocês eu sofro de novo as dores de parto, até que Cristo se forme em vocês”
(4,19). É a situação de dificuldades e sofrimentos.
h)
Alguns membros, convertidos
gálatas, se fizeram circuncidar (5,2-4) e exerciam pressões sobre os outros
membros das comunidades (6,13).
i)
Havia também o grupo helenizado
com o espírito da busca desenfreada por bens, poder e prazer, que radicalizou a
liberdade, transformando-a em libertinagem, causando o problema ético e
aumentando as tensões internas (5,13-24).
j)
Os opositoresnegaram inclusivea autoridade do
apóstolo Paulo e seu evangelho (1,1-5.7-10).
k)
Diante da situação real de perder
as comunidades “amadas”, Paulo, indignado e revoltado, chegou a dizer: “Ó
gálatas sem juízo! Quem foi que os enfeitiçou, a vocês que tinham diante dos
olhos os traços bem claros de Jesus Cristo crucificado?” (3,1); “Aqueles
demonstram interesse por vocês, mas a intenção deles não é boa. Querem
separá-los de mim, para que vocês se interessem por eles” (4,17) “Que se
mutilemde uma vez aqueles que estão perturbando vocês!” (5,12).
Informado da grave ameaça para a
fé em Jesus Cristo crucificado, seu verdadeiro evangelho e a prática do amor,
igualdade e unidade, bem como da acusação contra sua condição do apóstolo,
Paulo escreveu a carta aos Gálatas, cheia de raiva e emoção, provavelmente de
Éfeso, entre54/55 d.C.
Conhecendo a
carta aos Gálatas
A carta aos Gálatasémais profundamente
marcada pelo tom duro e polêmico do que qualquer outra carta, e é a única carta
sem a costumeira ação de graçasnas saudações inicial e final. Ela contém cinco
argumentos usados por Paulo contra os adversários: histórico, teológico,
exegético, batismal e emocional.
Eis um possível esquema para a carta:
a) Introdução–
1,1-10: Apresentação do tema “o Evangelho de Cristo”, baseado na graça de Deus.
b)
Primeira parte – 1,11-2,21: Relato
autobiográfico e histórico.
c)
Segunda parte – 3,1-5,12: Argumento contra os
adversários.
d)
Terceira parte– 5,13-6,10: Exortação ética –
liberdade e caridade.
e)
Conclusão– 6,11-18: Severa advertência contra
o grupo judaizante radical.
Conhecendo os conteúdos
específicos
Convencido do perigo que
representava para o Evangelho de Jesus Cristo crucificado, Paulo não poupou
críticas fortes contra os grupos formados pelos judaizantes e helenizados
radicais, que estavam desvirtuando o valor salvífico do amor gratuito de Jesus
Cristo crucificado, a manifestação da graça de Deus. Ele procurou mostrar os
conteúdos do verdadeiro Evangelho com base na experiência e na Escritura:
1) Pregar e praticar o Evangelho
de Jesus Cristo crucificado (Gl 1,7): o verdadeiro evangelho (Gl 2,5.14) é a
própria pessoa de Jesus de Nazaré, que pregou e praticou
a justiça e deu sua vida na cruz, por puro amor ao próximo (Gl 1,3-5). A fé na
cruz de Jesus é fonte da liberdade, da irmandade, da vida, porque é na cruz de
Jesus de Nazaré, que Deus Pai manifestou sua graça, seu amor primeiro e
gratuito.
2) Ser herdeiro da promessa de Abraão pela fé
em Jesus Cristo crucificado (Gl 3,6-18): o fato de Jesus Cristo – que conviveu
com os pecadores e morreu na cruz por amor ao próximo – ser reconhecido como o
Messias sofredor e o Filho de Deus (Gl 4,4), é a mensagem essencial de que o
Deus da promessa a Abraão (Gn 15,4-8; 18,17-18) reconhece a pessoa não em virtude
das obras da Lei, mas de sua prática do amor ao próximo. A fé no Messias
sofredor abre a salvação a todos os povos, sem o pré-requisito do cumprimento
da Lei, como a circuncisão e as leis alimentares (Gl 2,11-14).
3) Ter liberdade em Jesus Cristo crucificado
(Gl 5,1): no Espírito (o poder do amor gratuito) de Jesus Cristo crucificado, a
pessoa torna-se “nova criatura” (Gl 6,15), fica
liberta de qualquer lei e de qualquer diferença que possa privilegiar a uns e
marginalizar a outros (Gl 3,28).
4) Viver segundo o Espírito (Gl 5,5): quem
caminha na fé e no amor do Crucificado é acompanhado pela força criadora,
profética, sapiencial e libertadora do Espírito para
viver de modo como Jesus viveu: na liberdade, na justiça e no amor, criando
irmandade, paz e esperança.
5) Carregar o peso uns dos outros
(Gl 6,2): a verdadeira liberdade cristã
é fruto do Espírito de Deus, que leva à vida de caridade, justiça e
fraternidade, sobretudo de amor-serviço aos outros (Gl 5,13-6,10).
6) Evangelizar com base na realidade (Gl
4,12): ao contrário do grupo judaizante, Paulo
considerou e respeitou os anseios por liberdade e igualdade do povo sofrido e
escravizado, formando comunidades de fraternidade sem a imposição das leis e
costumes judaicos.
7) Evangelizar junto com os
pobres (Gl 2,10): Paulo evangelizou as nações, pondo-se ao lado dos pobres,
mergulhando no mundo deles, carregando os fardos do trabalho (Gl 6,2), organizando
comunidades de partilha e de fraternidade junto com os pobres (1Cor 4,9-13).
8) Carregar as marcas de Jesus
que significam as cicatrizes dos maus-tratos sofridos e suportados pelo
Nazareno (Gl 6,14.17; cf. 2Cor 4,10): quem assume o Evangelho de Jesus Cristo
crucificado, seu amor gratuito e o espírito da liberdade, será perseguido e
maltratado no mundo do legalismo judaico e da escravização do Império. As
pessoas que seguem Jesus, porém, mesmo perseguidas, devem gloriar-se na cruz de
Jesus Cristo, porque é dela que nasce “o poder de Deus e sabedoria de Deus”
(1Cor 1,24), para construir o mundo da partilha e da fraternidade: o Reino antecipado de Deus.
Essas são algumas das principais
convicções que orientam e animam Paulo em sua missão. As certezas que podem ser
encontradas ao longo da carta aos Gálatas amadureceram aos poucos, à luz de seu
próprio trabalho missionário e pastoral, guiado pela reflexão sobre as
palavras, ações e vida de Jesus à luz da Escritura, e também à luz da realidade
do povo sofrido, dos empobrecidos, marginalizados e escravos como os gálatas.
No contexto do imperialismo
romano e da religião legalista e ritualista do judaísmo oficial, Paulo pregou
Jesus crucificado e ressuscitado e ousou caminhar na contracorrente, com a proposta
do amor gratuito e da justiça do “Servo sofredor”. Quase dois mil anos se
passaram, mas o imperialismo continua encarnando em muitas “feras”, devorando
pessoas inocentes mediante guerras, ditaduras brutais, trabalhos em condição de escravidão ou semiescravidão,
economia selvagem, fomes, violências. E muitas igrejas, com seu Cristo
triunfalista, legalista e ritualista, servem para conservar as feras do
presente.
Mensagens principais
A carta aos
gálatas tem como tema central a defesa do evangelho do amor gratuito de Deus,
manifestado em Jesus Cristo crucificado. Diante do grupo judaizante radical que pregava a necessidade da
Lei para a Salvação, Paulo insiste na ação amorosa: “o homem não é justificado
pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo. E nós cremos em Cristo Jesus,
para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da Lei. Porque,
pelas obras da Lei, ninguém será justificado” (2,16). O importante é a fé que
age pelo amor, e não o cumprimento
de normas e ritos.
Esta
carta continua questionando o nosso seguimento de Jesus Cristo: a nossa
vivência do evangelho é baseada na graça e no Espírito ou no cumprimento de
ritos e preceitos? Uma pergunta
que precisamos sempre nos fazer. Com estes encontros, queremos mergulhar no estudo
e na reflexão da carta aos Gálatas, buscando luzes para iluminar nossa
caminhada pessoal e comunitária. Paulo insiste que a vida no Espírito é uma
vivência livre, tendo como fruto o amor e seus desdobramentos, que sempre visam
o bem do próximo. Eis os principais textos e mensagens para nossa caminhada
cristã hoje:
Primeiro:
O evangelho de Jesus Cristo
Crucificado (2,11-21). As primeiras comunidades que seguiam Jesus
enfrentaram muitas dificuldades em romper as barreiras impostas pela Lei
judaica, que separavam os judeus dos não judeus. O seguimento de Jesus Cristo
exige a superação de toda e qualquer barreira que discrimina e marginaliza uma pessoa. Revendo
o passado, vamos olhar a nossa prática para identificar o que nos impede de
viver uma vida conforme as exigências do evangelho e reafirmar nosso
compromisso com as pessoas crucificadas de hoje.
Segundo: Todos somos um em Cristo Jesus (3,1-14.26-29). É importante compreender que a
fé nos torna filhas e filhos de Deus e que Nele todos somos um. Cada povo é
diferente, mas as diferenças não justificam nenhuma forma de separação. Vamos
refletir sobre a unidade que somos chamadas e chamados a vivenciar a partir de
Cristo Jesus. Como pessoas batizadas, a nossa vocação é deixar que Cristo viva
em nós, ou seja, olhar a realidade com os olhos D’Ele e romper as barreiras
social, religiosa, cultural e de gênero.
Terceiro: Viver o amor e a
ternura na missão (4,12-20). Paulo vivenciou uma experiência profunda de
acolhimento nas comunidades dos gálatas apesar de sua doença, o que favoreceu o
amor e a amizade entre eles. Em nossas atividades missionárias, é fundamental
criar e aprofundar laços de amizade e de afeição com as pessoas com as quais
entramos em contato. A vivência de verdadeiras relações fraternas na missão
fortalece o compromisso com a construção do Reino de Deus.
Quarto: O viver em Cristo nos
torna livres (5,1-12). Como pessoas cristãs, recebemos o Espírito de Deus
como força criadora, profética, sapiencial e libertadora para viver como Jesus
viveu. As comunidades cristãs têm a missão de vivenciar a liberdade e uma fé
que age através do amor (5,7). A vida cristã deve ser orientada pela esperança,
justiça e solidariedade. O excessivo apego a normas, ritos e regras pode nos
afastar do seguimento de Jesus de Nazaré.
Quinto: Livres para amar e servir
(5,13-6,10). Para não deixar
dúvidas sobre a identidade cristã, Paulo apresenta uma série de exortações às
comunidades dos gálatas e reforça que a vocação cristã é para a liberdade, o
que implica viver segundo o Espírito. Aquele ou aquela que vive segundo as
obras da carne provoca rupturas consigo, com Deus e com o próximo. A vida
segundo o Espírito é pautada pelo amor, que se expressa no serviço solidário
para com todas as pessoas. Estas exortações continuam sendo atuais para nós e
nossas comunidades.
Que a leitura e a reflexão da carta
aos Gálatas possam lançar novas luzes para a nossa vivência individual e
comunitária. Deixemos ecoar em nossos corações os apelos para uma vida cuja
marca seja o amor solidário para com todas as pessoas: “Não nos cansemos de
fazer o bem” (6,9a).
[1]
Importante: onde não estiver indicado o livro bíblico, a citação é da carta aos Gálatas. Os textos foram extraídos,
em sua maioria, da Nova Bíblia Pastoral,
São Paulo, 2015.
[2] Alguns
pesquisadores têm proposto as comunidades do sul da Galácia como os
destinatários da carta aos Gálatas, datando a carta por volta do ano 50, de
Corinto. Esta discussão continua em aberto.
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