sexta-feira, 8 de outubro de 2021

5. O evangelho de Jesus Cristo crucificado. Uma leitura de Gl 2,11-21

 

O EVANGELHO DE JESUS CRISTO CRUCIFICADO

Uma leitura de Gl 2,11-21

Shigeyuki Nakanose, svd

Maria Antônia Marques

 

Resumo:

            Além do evangelho do imperador romano, Paulo enfrenta “outro evangelho” (Gl 1,7), baseado na observância da lei da pureza, que justifica a segregação nas comunidades gálatas. Ele prega o “verdadeiro evangelho” (Gl 2,5), fundamentado na justiça que vem da fé no amor e na graça de Jesus Cristo crucificado (Gl 5,1-12), construindo a união das pessoas sem as barreiras ética, social e de gênero (Gl 3,28).

 

 

            Na véspera do Natal, um menino estava vendendo doce caseiro em frente a um supermercado. Era um dia chuvoso e frio. O olhar dele estava triste e perdido. Nos ônibus, no metrô, nas praças e ruas de nossas cidades e nas portas de nossas igrejas há muitas pessoas com esse mesmo semblante. A situação de miséria é muito grande, e muitas vezes perdemos a sensibilidade diante das pessoas que sofrem. Em 2019, o Brasil tinha 4,4 milhões de crianças em situação de extrema pobreza. Com a pandemia da covid19, os números são ainda maiores. Muita gente está crucificada pela miséria, fome, violência, humilhação...

            Por volta do ano 50 d.C., Paulo conviveu com a gente crucificada pelo Império Romano: “Até o presente, passamos fome e sede, estamos mal vestidos, somos maltratados, não temos morada certa, e nos cansamos trabalhando com as próprias mãos. Somos amaldiçoados, e bendizemos. Somos perseguidos, e suportamos. Somos caluniados, e encorajamos. Até agora, nos tornamos como o lixo do mundo, a escória de todos” (1Cor 4,11-13).[1] Nessa realidade, Paulo pregou o evangelho de Jesus Cristo crucificado contra o evangelho do Imperador e o do judaísmo oficial e legalista.

 

1. O evangelho de Jesus Cristo crucificado

           

O termo “evangelho” (euangelion em grego) era usado na propaganda e no culto ao imperador romano (cf. HORSLEY, 2004, 21-32; HARRISON, 2016, 165-184). Os arautos, funcionários encarregados de divulgar os decretos, as campanhas, as vitórias e os avanços do Império partiam de Roma para todas as principais cidades e, quando lá chegavam, iniciavam o seu anúncio com as palavras: “Boa Nova” de César, filho de Deus, ao povo da cidade.  

Há várias inscrições descobertas que contêm o termo evangelho usado pelo imperador romano César Augusto (27 a.C.-14 d.C.). Nelas, o imperador Augusto, o senhor do Império e da terra, foi proclamado como “filho divino” e “salvador” (soter em grego), porque foi ele que estabeleceu na terra a paz e a salvação definitivas, tanto para o passado como para o presente e o futuro. Seu nascimento e sua manifestação – advento e epifania – foram descritos, nas inscrições, como evangelho poderoso!

                Com uma boa infraestrutura (exército, estrada, correio, hospedaria, administração da cidade etc.), o Império propagava o seu evangelho nas celebrações públicas com muita pompa, para agitar, atrair, influenciar e controlar o povo! O evangelho do imperador era uma das “armas poderosas” para impor e legitimar o poder e a dominação do Império, ditando e moldando o cotidiano do povo dominado e sofrido, como o da Ásia Menor e o da Grécia. 

            Foi a esse mundo do Império Romano que Paulo, um judeu convertido ao movimento de Jesus Messias, se dirigiu, anunciando o evangelho alternativo, manifestado em Jesus Cristo crucificado (Gl 3,14), para converter o mundo em uma assembleia (ekklesia) bem diferente. Ele tentou construir comunidades da “partilha e do serviço” nesse mundo do “acúmulo e da dominação” do Império.

            O fato de Paulo pregar a palavra e a prática de Jesus judeu é significativo. Denota que o evangelho de Jesus Cristo crucificado tem suas raízes no judaísmo. A “Boa Nova” é moldada pela história dos valores culturais e das identidades dos judeus que transparecem na Escritura:

 

a)    “Aquele que me anunciou, dizendo: ‘Saul está morto’, quando achava que era portador de boa notícia, eu o agarrei e o matei em Siceleg. Este foi meu pagamento a ele pela boa notícia” (2Sm 4,10). No Antigo Testamento, o termo evangelho, besorah em hebraico (euangelion na LXX, Septuaginta – a versão dos Setenta), originalmente, designa a recompensa pelo anúncio de uma vitória, ou também o próprio anúncio de uma boa nova como a de uma vitória sobre o inimigo.

b)    “Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz a boa notícia, que anuncia a salvação, que diz a Sião: ‘Seu Deus reina’” (Is 52,7). Durante o exílio da Babilônia, o Segundo Isaías profetiza que os mensageiros acorrerão ao país para anunciar o evangelho, “boa notícia” (salvação): Javé inaugurará o seu reinado da justiça e da graça em Sião (cf. Is 52,1-12).

c)    “O espírito do Senhor Javé está sobre mim, porque Javé me ungiu, Ele me enviou para dar a boa notícia aos pobres, para curar os corações feridos, para proclamar a libertação dos escravos e pôr em liberdade os prisioneiros” (Is 61,1). Diante da exploração econômica e da escravidão no período pós-exílico, o Terceiro Isaías anuncia o evangelho da salvação de Javé para inverter a realidade sofrida do povo, pela exploração dos teocratas judeus, aliados e servidores do Império Persa: Javé protege a vida, sobretudo das pessoas empobrecidas (cf. Is 65,17-25).

d)    “Cantem para Javé, bendigam o seu nome! Proclamem, dia após dia, a sua vitória (boa notícia ou salvação). Majestade e esplendor estão à sua frente, força e ornamento em seu santuário” (Sl 96,2.6). No judaísmo oficial do templo, os teocratas (o grupo de Neemias e Esdras) pregam a salvação pela realização de certos ritos cultuais no templo (sacrifícios de expiação, jejuns) e pela observância da Lei (sábado, circuncisão, lei do puro e do impuro etc.), desprezando, contudo, os preceitos elementares de justiça social e de amor ao próximo.

 

Paulo, um judeu fariseu do judaísmo oficial, pregava o evangelho (salvação) pela observância da Lei, submetendo o povo ao jugo do enorme aparato de prescrições referentes ao puro e impuro. Inclusive, para a visão escatológica dos fariseus, a salvação chegará quando os gentios participarem do povo de Israel pela observância da Lei, sobretudo pela prática da circuncisão. Quando todos forem praticantes irrepreensíveis da Lei, então a salvação virá!

Ao aceitar a fé em Jesus Cristo crucificado, Paulo, porém, mudou de um modo fariseu de ver a Deus e ler a Escritura para outra visão e vivência do judaísmo (cf. ARBIOL, 2018, 45-85). Como homem bem educado e estudado na Escritura, ele começou a pregar e praticar o evangelho do judaísmo popular da libertação dos pobres, condenados pela lei do puro e do impuro: “E como o anunciarão, se não forem enviados? Como está escrito: ‘Como são belos os pés dos que anunciam boas notícias!’ Mas nem todos obedeceram ao evangelho” (Rm 10,15-16a).

Paulo adapta o texto de Is 52,7, escrito pelo grupo do Segundo Isaías que exerceu suas atividades entre os desterrados na Babilônia. O evangelho do grupo assegura a todos a vida por meio da partilha e da solidariedade (cf. Is 55,1-3), o que Paulo anuncia como “boas notícias” ao longo da sua atividade missionária. Por isso, o termo evangelho aparece como uma marca registrada de Paulo nos seus escritos. Das 76 vezes em que o termo “evangelho” é empregado no Novo Testamento, 48 encontram-se nas “cartas genuinamente consideradas” como as de Paulo. 

É notável também que o significado do evangelho de Paulo é marcado pela cruz de Jesus Cristo: “Anunciamos Cristo crucificado” (1Cor 1,23); “Pois Cristo me enviou, não para batizar, mas para anunciar o evangelho, sem usar a sabedoria da linguagem, para que a cruz de Cristo não se torne inútil. De fato, a linguagem da cruz é loucura para os que se perdem. Mas, para os que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,17-18).

A crucificação, uma pena cruel, era loucura para o povo do tempo de Paulo. No contexto judaico, de modo particular, o que era dependurado na árvore se tornaria objeto da maldição de Deus (cf. Dt 21,22-23). Por isso, Jesus de Nazaré, condenado pelos sumos sacerdotes e pelo sinédrio, devia ser visto como um homem amaldiçoado e considerado transgressor da Lei e dos rituais do puro e impuro. E, de fato Jesus, foi visto assim por muita gente do judaísmo oficial, pessoas que entendiam que as doutrinas, como a teologia da retribuição, as leis religiosas, como as da pureza, do sábado, os rituais e as liturgias tinham mais importância que a vida, e que a transgressão de alguma parte delas justificava castigos, violências e até mesmo a morte. Porém, o evangelho, a “Boa Notícia”, de Jesus de Nazaré contrasta frontalmente com esta forma de viver a religião e a espiritualidade. O evangelho de Jesus nos ensina a centralidade da pessoa humana (cf. Mc 2,27).

Por isso, para Paulo, o fato de Jesus Cristo, que conviveu com os pecadores e morreu na cruz por amor ao próximo, ser reconhecido como o Messias servo e o Filho de Deus (Gl 4,4), é a mensagem essencial de que o Deus da promessa a Abraão não é um Deus que reconhece a pessoa em virtude das obras da Lei, mas de sua prática de amor ao próximo (Gl 3,8-14). A fidelidade ao evangelho do Jesus Cristo crucificado deve ser traduzida na prática do bem e em favor da vida plena do ser humano: cooperação mútua, igualdade, unidade etc. (Gl 3,26-29: cf. DUFF, 2017, 111-192).

O evangelho da cruz, como centro de todo ensinamento cristão, deve ser difundido na vida cristã do dia a dia. Com esta proposta, Paulo incansavelmente desempenhou-se na missão no meio dos gentios, ajudando a fundar as comunidades dos seguidores e seguidoras de Jesus Cristo na Ásia Menor, Macedônia e Grécia. Algumas delas foram as comunidades gálatas. Com grande entusiasmo, os gálatas haviam acolhido o evangelho de Jesus Cristo crucificado, o que suscitou o sonho de vida e liberdade para quem vivia sob o jugo da sociedade escravagista do Império. Porém, o entusiasmo durou pouco. As comunidades “abandonaram tão depressa a graça de Cristo”:

 

Fico admirado de que vocês, para seguirem outro evangelho, tenham abandonado tão depressa aquele que os chamou mediante a graça de Cristo. Não existe outro evangelho. No entanto, alguns estão deixando vocês confusos, querendo distorcer o evangelho de Cristo. Maldito seja aquele que anunciar a vocês outro evangelho, ainda que sejamos nós mesmos ou algum anjo do céu (Gl 1,6-8).

 

Com a Escritura na mão, o grupo judaizante, que anunciava outro evangelho baseado na observância da Lei, agitou e provocou uma crise nas comunidades gálatas, minou inclusive a autoridade apostólica de Paulo. Informado da grave ameaça para a fé centralizada na cruz de Jesus Cristo, Paulo escreve a carta aos Gálatas, cheia de ira e paixão, para defender o evangelho de Jesus Cristo crucificado. Já na primeira parte da carta (Gl 1,11-2,21), ele narra o incidente com o grupo judaizante em Antioquia, acusando-o de “hipócrita da Lei”.  Defende o seu evangelho, baseado na fé no amor e na graça de Jesus Cristo, manifestado na cruz (cf. CROSSAN; REED, 2002, 167-215; HEYER, 2008, 165-179; SCHREINER, 2010, 31-59).

 

2. Justificados pela fé em Jesus Cristo crucificado

 

Diante da grave ameaça para a fé em Jesus Cristo crucificado e a acusação contra a sua autoridade apostólica nas comunidades gálatas, Paulo levanta o argumento histórico e existencial contra os seus opositores judaizantes (Gl 2,11-14), para expor o seu ensinamento sobre o evangelho de Jesus Cristo crucificado (Gl 2,15-21). É uma síntese de seu pensamento sobre a salvação pela fé no amor de Jesus Cristo, não pelo cumprimento da Lei, o resumo conciso de seu ensino, bem ilustrado e argumentado por um fato histórico ocorrido na importante comunidade de Antioquia, uma base importante de expansão do evangelho de Jesus Cristo no meio dos gentios.

Paulo mesmo narra o incidente histórico: “Quando Cefas chegou a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, porque ele merecia repreensão. De fato, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele comia com os gentios. Porém, depois que chegaram aqueles de Tiago, ele evitava os gentios e se afastava, com medo dos circuncidados. E outros judeus caíram no mesmo fingimento de Cefas, a tal ponto que até mesmo Barnabé se deixou levar pelo fingimento deles” (Gl 2,11-13).

Cefas, ou seja, Pedro, chegou a Antioquia. Ele nunca tinha vivido numa comunidade mista onde judeus e gentios conviviam em irmandade. Adotou os hábitos normais à mesa da comunidade de Antioquia e foi tomar as refeições com os gentios, desprezando as normas restritivas do puro e do impuro. Porém, o comportamento aberto de Pedro com os fiéis de Antioquia não durou muito tempo. “Alguns da parte de Tiago” (os “circuncidados”) chegaram de Jerusalém, insistindo na aplicação das leis alimentares com maior rigor (cf. KEENNER, 2019, 152-166).  

Eles deviam ser os “falsos irmãos” (Gl 2,4), cristãos judaizantes radicais (cf. At 15,1), que exigiam dos gentios cristãos a observância da Lei em sua totalidade (os 613 mandamentos), incluindo a circuncisão e as leis alimentares (não comer porco, não comer carnes sacrificadas a ídolos, não comer com os gentios etc.). Lutavam pela imposição da Lei para todos os membros da comunidade cristã, inclusive os gentios crentes em Jesus Cristo.   

Diante dos olhos dos judaizantes radicais, Pedro evitou comer com os gentios. Outros judeus da comunidade, incluindo Barnabé, caíram no mesmo fingimento de Pedro. O fato foi grave, pois ele não somente era judeu, mas também membro da comunidade-mãe de Jerusalém, que determinava as normas de comportamentos dos judeus crentes em Jesus Cristo. O gesto hipócrita de um líder da igreja contagiou os outros e pôs tudo a perder, chegando até mesmo a desviar a comunidade do “verdadeiro evangelho”: “Quando, porém, vi que não agiam corretamente segundo a verdade do evangelho, então eu disse a Cefas diante de todos: ‘Se você é judeu e vive como os gentios, e não como os judeus, como pode obrigar os gentios a viver como os judeus’” (Gl 2,14: cf. PESCE, 2017, 168-172).

            O verdadeiro evangelho é, antes de tudo, a própria pessoa de Jesus de Nazaré crucificado, que praticou a justiça e deu a vida por puro amor ao próximo. A cruz de Jesus é fonte da liberdade, da irmandade e da vida. A salvação, portanto, não é realizada pelas obras da Lei, mas, sim, pela graça de Deus manifestada na vida de Jesus Cristo crucificado. Pela prática do verdadeiro evangelho de Jesus Cristo, a pessoa é considerada justa e passa da morte para a vida, o que Paulo chama de “justificação”: “O homem não é justificado pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo. E nós cremos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da Lei. Porque pelas obras da Lei, ninguém será justificado” (Gl 2,16-17; cf. 3,8.11.24; 5,4: cf. DeSILVA, 2018, 216-262).

O grupo judaizante admite que a promessa da salvação aos descendentes de Abraão poderia ser estendida aos gentios “pecadores”, como Paulo ironicamente declara: “Nós somos judeus de nascimento, e não gentios pecadores” (Gl 2,15; cf. Rm 2,12). Porém, para serem salvos, ou seja, justificados por Deus, os gentios têm de viver como judeus, filhos de Abraão. Devem observar a Lei, que abrange todos os aspectos da vida e provoca consequentemente desigualdade e segregação ética, religiosa, cultural e de gênero.    

Na vida da comunidade, a justificação, a salvação antecipada, deveria acontecer na irmandade sem as barreiras raciais, sociais e sexuais, manifestada, por exemplo, na eucaristia na qual a comunidade deveria confessar realmente a presença de Jesus Cristo, com todos os seus membros partilhando a caridade. Com a implantação da Lei, como a circuncisão e as leis alimentares, a irmandade da comunidade seria dividida e destruída, portanto não poderia haver eucaristia, a comunhão mútua (cf. 1Cor 11,17-34).      

Paulo já havia negado e combatido a justificação pela Lei, no processo da mudança: “Considero tudo como perda, diante do bem superior que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado nele. E isso, não tendo mais como justiça minha aquela que vem da Lei, mas aquela que vem de Deus e se baseia na fé” (Fl 3,8-9). Ao apresentar o seu próprio esvaziamento, Paulo faz forte crítica contra os judaizantes que propõem confiança na observância da Lei para abrir as portas da salvação.  Para ele, a cruz de Jesus é o ponto de partida da libertação de tudo o que escraviza e diminui a vida. 

Desde o ingresso ao movimento de Jesus Cristo, Paulo afirma ter deixado o caminho da salvação pela observância da Lei e continuava pregando a salvação pela graça e pelo amor de Jesus Cristo crucificado. Por isso, ele responde aos seus opositores: “De fato, se eu volto a construir as coisas que havia destruído, aí sim eu me mostro um transgressor” (Gl 2,18). Ele ironicamente pergunta: eu necessito da Lei para salvar-me? Aí sim, sou pecador ao não cumprir a Lei. Para ele, submeter-se à Lei outra vez como no tempo de Saulo fariseu, perseguidor dos seguidores de Jesus Cristo, seria envolver-se novamente no jugo da escravidão da Lei: promover o pecado da segregação, desigualdade e marginalização das pessoas.

E, o que é mais grave, o grupo judaizante faz impor aos gentios a canga da escravidão da Lei, em nome do evangelho de Jesus Cristo, baseado na observância da lei da pureza. É por isso que Paulo não se contém e afirma com vigor: “Com efeito, pela Lei eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo” (Gl 2,19).

Desde a primeira página da carta aos Gálatas, Paulo reforça a mesma ideia: “Senhor Jesus Cristo, que se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos livrar do mundo mau” (Gl 1,3-4). A cruz de Jesus é o resultado da sua fidelidade à missão da justiça e compromisso com seus irmãos até o fim, no “mundo mau”. Por seu amor gratuito, Jesus deu sua vida por nós. Ser cristão não é basear a própria vida e a da comunidade nas obras da Lei, para obter a salvação. Ao contrário, deve “morrer para a Lei a fim de viver para o Deus da vida” e viver no amor gratuito do Jesus Cristo crucificado, ou seja, “estar crucificado com Cristo” (Gl 6,14).

No batismo, o que Paulo ou qualquer cristão, de ontem e hoje, deve assumir: estar crucificado, morrer e ressuscitar para Deus. “Quero assim conhecer a Cristo, o poder da sua ressurreição e a comunhão nos seus sofrimentos, assumindo a mesma forma da sua morte, para ver se de alguma forma alcanço a ressurreição dentre os mortos” (Fl 3,10-11), confessa Paulo. Conhecer Jesus Cristo crucificado e ressuscitado é viver no amor e na graça do Deus da vida, que transforma a morte em “nova vida” (Rm 6,4).

Por isso, acreditar e pregar o evangelho da cruz é colocá-lo no centro da vida e viver na mais profunda comunhão com Jesus Cristo, a ponto de poder dizer: “E já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim. E a vida que vivo agora na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20). É a declaração existencial de Paulo na caminhada missionária: “Trazemos sempre em nosso corpo a agonia de Jesus, para que em nosso corpo também se manifeste a vida de Jesus” (2Cor 4,10; cf. Rm 8,9-10).

Ser fiel à “vida de Jesus” é viver no amor gratuito de Jesus Cristo crucificado, não na acomodação escravizadora do ritualismo, do moralismo e da estrita observância da Lei para obter a salvação de Deus. Basear a vida em regras ou na observância da Lei que obriga Deus a retribuir aos “justos” seria a negação da graça de Deus, dada na cruz de Jesus: “Não torno inútil a graça de Deus. Porque, se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu inutilmente” (Gl 2,21; cf. 3,21-22).

 

3. O escândalo da cruz

 

A centralidade da cruz no evangelho de Paulo transparece em suas palavras:

 

·         “Pois Deus não nos destinou para a ira, e sim para possuirmos a salvação por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele morreu por nós, para que, acordados ou dormindo, vivamos com ele” (1Ts 5,9-10).

·         “Irmãos, sejam meus imitadores e observem os que vivem de acordo com o modelo que em nós vocês têm. Porque eu já lhes disse muitas vezes, e agora repito chorando: há muitos que vivem, como inimigos da cruz de Cristo” (Fl 3,17-18).

·         “Pois Cristo me enviou, não para batizar, mas para anunciar o evangelho, sem usar a sabedoria da linguagem, para que a cruz de Cristo não se torne inútil. De fato, a linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, Mas, para os que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,17-18).

 

A última palavra de Paulo menciona a “loucura” para um judeu fariseu pelo fato de acreditar em Jesus humilhado e crucificado como o Messias de Javé, o Filho de Deus. Pois o Messias, “Ungido”, aparecia, na corrente oficial do judaísmo, como um rei poderoso da casa de Davi: “Eu ungi o meu rei sobre Sião, minha montanha santa! Proclamarei o decreto de Javé, que disse para mim: ‘Você é meu filho, hoje eu gerei você!’” (Sl 2,6-7; cf. 2Sm 7,12-16). O Messias esperado haveria de derrotar seus inimigos, e, por isso, não seria humilhado e crucificado por eles. A cruz seria um escândalo!

Paulo mesmo expressou a cruz como a humilhação (Fl 2,8) e a maldição (Gl 3,13). Entretanto, ele ingressou no movimento de Jesus, converteu-se de um modo farisaico de ver a Deus, a Escritura, as pessoas e as coisas, e passou a fazer parte desta outra corrente do judaísmo, que via e seguia Jesus Cristo como o justo rejeitado (cf. Sb 1,12-14. 2,12-20) e, sobretudo o servo sofredor: “Oprimido, ele se humilhou, não abriu a boca. Para este grupo, Jesus é cordeiro levado ao matadouro, como ovelha muda diante do tosquiador, ele não abriu a boca. Foi preso, julgado injustamente. E quem se preocupou com a vida dele? Pois foi cortado da terra dos vivos e ferido de morte por causa da transgressão do meu povo” (Is 53,7-8).   

Paulo não cita de modo claro os cânticos do servo de Isaías, mas alude a eles de modo implícito ao falar da vida e da missão de Jesus (cf. ARBIOL, 2018, 57-59):

 

·         "Vejam meu servo, a quem eu sustento. Ele é o meu escolhido, nele tenho o meu agrado. Eu coloquei sobre ele meu espírito, para que promova o direito entre as nações” (Is 42,1). Graças ao Espírito de Javé, o servo promove a sua missão no meio de todas as nações.

·         A missão do servo sem o poder da força e da violência é realizar a justiça e promover, na fidelidade, o direito para todo o povo, sobretudo para as pessoas empobrecidas e enfraquecidas (Is 42,2-7).

·         A missão do servo é marcada pela escuta da palavra de Deus, pela fidelidade no anúncio, pela perseguição e resistência (Is 50,4-11).

·         A morte do servo sofredor é consequência da sua prática da justiça e da sua fidelidade até o fim (Is 53,1-9).

·         O texto do servo insiste na substituição do sacrifício de expiação pela prática da solidariedade (Is 53,10).

·         Ele morre, mas a sua vida terá continuidade por meio de seus descendentes. O projeto da justiça e do direito para os pobres triunfará (Is 53,11).  

 

Paulo assume a identificação de Jesus Cristo crucificado como o servo sofredor e desenvolve sua fé e missão na linha da missão do servo: o projeto da justiça e do direito para toda a terra. Leva o evangelho de Jesus Cristo, Messias crucificado, como a fonte da graça e da benção de Deus para os gentios na Galácia, Macedônia e Grécia. Ao anunciar e prometer bênçãos (Boa Nova) de Jesus Cristo crucificado para todos os povos, Paulo enfrenta opções rivais, como o evangelho do imperador a serviço dos interesses do império e o judaísmo oficial baseado na observância da Lei, bem como das pessoas que seguiam Jesus e ainda estavam vinculadas a esse judaísmo.

De suas cartas, deduz-se que Paulo converte o “escândalo da cruz” em seu ensinamento central para combater e argumentar contra os seus opositores (o Império e o judaísmo oficial), e para dialogar com suas comunidades em problemas:

 

a)     “Nós anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para as nações. No entanto, para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus. [...] Deus, no entanto, escolheu o que é loucura no mundo para desacreditar os sábios. E Deus escolheu o que é fraqueza no mundo para desacreditar os fortes. E Deus escolheu o que é insignificante e sem valor no mundo, coisas que nada são, para reduzir a nada as coisas que são. E isso para que nenhuma criatura se glorie diante de Deus” (1Cor 1,23-24.27-29). No seu trabalho para com os pobres, “o lixo do mundo e a escória de todos” (1Cor 4,13), Paulo percebe e compreende que Deus escolhe as pessoas pobres e insignificantes para manifestar sua força, tal como é revelada em Jesus Cristo crucificado. Isso seria uma oposição e crítica contra o caminho do poder e violência.   

b)    “Aqueles que querem aparecer na carne são os que forçam vocês a circuncidar-se. E o fazem só mesmo para não serem perseguidos por causa da cruz de Cristo. Porque nem mesmo aqueles que se fazem circuncidar observam a Lei. No entanto, eles querem que vocês se façam circuncidar, para assim se vangloriarem da carne de vocês. Quanto a mim, que eu nunca me vanglorie, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Por meio dele, o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo” (Gl 6,12-14). Concluindo a carta ao Gálatas, Paulo confirma a sua acusação ao grupo judaizante radical de falsidade: insistir na prática da Lei para evitar a perseguição; obrigar os gentios crentes em Jesus Cristo a observar a Lei. O argumento crítico dele está na cruz de Jesus Cristo, em sua morte por amor às pessoas injustiçadas no “mundo mau”. Ao pregar e experimentar o evangelho da cruz, Paulo traz seu corpo as marcas de Jesus Cristo. 

c)    “Portanto, de agora em diante, não julguemos mais uns aos outros. Em vez disso, tenham o propósito de não ser causa de tropeço ou escândalo para o irmão. Eu sei, e estou convencido no Senhor Jesus, que nada é impuro em si mesmo. Mas se alguém considera uma coisa como impura, esta coisa se torna impura para ele. Porém, se você deixa seu irmão entristecido por questão de alimento, você já não está agindo por amor. Com o alimento que você come, não cause a perdição de alguém pelo qual Cristo morreu” (Rm 14,13-15). Paulo aborda um dos problemas cotidianos da convivência cristã: certas normas alimentares da pureza. Prega a tolerância e o amor ao próximo, por quem Jesus Cristo viveu, morreu e ressuscitou (1Cor 8,11). O amor manifestado na cruz de Jesus deve ditar a edificação mútua das pessoas na comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus Cristo.   

 

A força do amor e da graça que Paulo descobre na cruz de Jesus está em oposição à grande ambição do ser humano: querer colocar-se no lugar de Deus. Jesus, o Filho de Deus, podendo exercer o poder, “esvaziou-se a si mesmo e tomou a forma de escravo, tornando-se semelhante aos homens” (Fl 2,7). Nesse esvaziamento e humilhação de Deus, manifesta-se o poder de viver, amar e servir aos próximos: “A vida que vivo agora na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20).

 

4. Uma palavra final

 

Deus continua pondo-se ao lado dos crucificados de hoje. A presença maciça dos crucificados se faz realidade em nosso Brasil, que ocupa o segundo lugar na má distribuição de rendas entre a sua população, atrás somente de Catar. No Brasil, os 1% mais rico concentram 28,3% da renda total do país (no Catar essa proporção é de 29). Ou seja, quase um terço da renda está nas mãos dos mais ricos.

Sabemos quem são as pessoas crucificadas de hoje? Depende de cada um. Depende da experiência do nosso cotidiano. Basta olhar ao nosso redor com a mínima sensibilidade humana: crianças mendigando nas ruas, crianças doentes morrendo apenas por causa da falta de alimentação e de cuidados básicos, os moradores das ruas, os milhões de desempregados em busca de trabalho etc. Ou – para as pessoas cristãs – olhar com a fé em Jesus Cristo crucificado e seu evangelho. São os olhares dos servos sofredores que marcam, orientam e ditam a vida cristã. Olhares que fazem repensar e alimentar nossa pastoral, nossas liturgias, catequeses, teologias, ações sociais e o jeito de ler a Escritura.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

ARBIOL, Carlos Gil. Paulo na origem do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2018.

CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Em busca de Paulo: como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007.

DeSILVA, David A. The Letter to the Galatians. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2018. (The New International Commentary on the New Testament).

DUFF, Paul B. Jesus Followers in the Roman Empire. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 2017.

HEYER, C. J. den, Paulo, um homem de dois mundos. São Paulo: Paulus, 2008.

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KEENER, Craig S. Galatians: a commentary. Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2019.

PESCE, Mauro. De Jesus ao cristianismo. São Paulo: Loyola, 2017.

SCHREINER, Thomas R. Galatians. Grand Rapids, Michigan: Zondervan Academic, 2010. (Zondervan Exegetical Commentary on the New Testament).

 

 



[1] Os textos foram extraídos da Nova Bíblia Pastoral, São Paulo: Paulus, 2015.

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