quarta-feira, 3 de novembro de 2021

 

Sumário:

1. Livro do Deuteronômio: Introdução 

2. "Não explore o assalariado necessitado e pobre". Uma leitura de Dt 24,10-22 

3. Um Deus ciumento e vingativo. Uma leitura de Dt 13,7-12 

4. O evangelho de Jesus Cristo crucificado: "É para a liberdade que Cristo nos libertou" (Gl 5,1)

5. O evangelho de Jesus Cristo crucificado. Uma leitura de Gl 2,11-21 

6. Uma reflexão sobre o Pai-Nosso (Mt 6,7-15)




UMA REFLEXÃO SOBRE O PAI-NOSSO (Mt 6,7-15)


Maria Antônia Marques

Shigeyuki Nakanose, svd

Centro Bíblico Verbo


O Pai-nosso é a oração que Jesus ensinou a seus discípulos; ela contém a síntese do projeto de Jesus. A oração é dirigida ao Pai: “Pai nosso que estás nos céus”. Aqui, podemos observar dois elementos fundamentais: em primeiro lugar reforça a filiação com Deus e a irmandade, a fraternidade solidária. Se não vivemos a fraternidade, se não vivemos como irmãs e irmãos, a oração do Pai-nosso em nossos lábios é mentirosa. A oração não é dirigida ao imperador ou a outra divindade, mas ao Deus criador.

            Muitos povos invocaram a Deus como “pai” ou “mãe”. Essa expressão indica relação de proximidade, confiança e respeito. Chamar a Deus de pai é reconhecer que ele é a fonte da vida e o Senhor. Na experiência do povo de Israel, a concepção de Deus como pai nasce junto com a compreensão de povo eleito, após o exílio da Babilônia: “Com efeito, tu és nosso pai. Ainda que Abraão não nos reconhecesse e Israel não tomasse conhecimento de nós, tu, Javé, és nosso pai, nosso redentor: tal é teu nome desde a antiguidade” (Is 63,16; cf. Is 64,7). Deus é visto como um pai amoroso que sempre esteve presente na história do seu povo.

            No Antigo Testamento, o título de pai para Deus era um título entre outros. Em Jesus é que vamos entender o que significa chamar a Deus de pai. Ao falar com Deus, Jesus o chama de Abba, um termo carinhoso usado pelas crianças para dirigir-se a seu pai. Chamar a Deus de papai ou de paizinho implica relação de intimidade, confiança, afeto, ternura. Ao ensinar a oração do Pai-nosso, Jesus quer que seus discípulos e discípulas desenvolvam a mesma relação de intimidade com Deus. Nos escritos de Paulo, lemos: “não recebestes um espírito de escravos, para recair no temor, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai!” (Rm 8,15). Quando rezamos o Pai-nosso deixamos aflorar em nosso ser o espírito de filhos e filhas de Deus?

            Em seguida, de maneira direta, temos os pedidos: “Santificado seja o teu nome, venha o teu Reino, seja feita a tua vontade” (6,9b-10). Estes pedidos estão voltados para Deus: nome, reino e vontade. O nome de Deus só será santificado quando houver condições dignas de vida, e quando vivermos na justiça, na fraternidade e na solidariedade. Na cultura judaica, o nome de uma pessoa ou de um objeto expressa o seu próprio ser. Santificar o nome de Deus é reconhecer a sua presença como um Deus amigo, amoroso e fiel. O nome de Deus continua sendo desprezado toda vez que seus filhos e filhas são explorados e injustiçados. Para que o nome de Deus seja glorificado é preciso que vivamos como irmãs e irmãos.

“Venha o teu Reino” é o desejo de que o reino de Deus se torne realidade entre nós. Um reino de justiça, paz e segurança. O reino de Deus ultrapassa as paredes da Igreja, ele está presente em todos os lugares onde reina o amor e a justiça. A chegada do reino de Deus é uma boa notícia para os pobres (5,3), as principais vítimas do sistema. O reino de Deus só se realizará quando cada pessoa que assume o projeto de Jesus estiver disposta a viver a justiça: “Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas” (6,33). É preciso arregaçar as mangas e trabalhar na construção de um mundo fraterno e solidário.

Qual é a vontade de Deus? Acreditamos que Deus é o Deus da vida e a sua vontade só pode ser vida em plenitude para o ser humano, para todos os seres e formas de vida. Com este pedido nos predispomos a escutar e acolher a vontade de Deus. O importante não é o nosso anseio ou o nosso desejo, mas abrir-se à vontade do Pai, o que não significa também anular a nossa vontade, mas orientar nossas disposições para o bem. Que a vontade de Deus atinja a totalidade do universo: “na terra como no céu!” (6,10).

Manter-se firme na vontade do Pai não é fácil. Exige coerência e constante renovação do compromisso com a causa da justiça. Esse projeto só se realiza quando há entrega: “Meu Pai, se não é possível que esta taça passe sem que eu a beba, seja feita a tua vontade” (26,42). Cumprir a vontade do Pai nos congrega na família de Jesus: “Aquele que fizer a vontade de meu Pai que está nos Céus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (12,50).

Após os três pedidos relacionados a Deus, a oração volta a sua atenção para as necessidades cotidianas: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”, “perdoa-nos as nossas dívidas”, “não nos submeta à tentação”, “livra-nos do Maligno” (6,11-13). O pedido do pão de cada dia não visa o acúmulo, mas a sobrevivência. No livro de Provérbios encontramos o mesmo pedido: “afasta de mim a falsidade e a mentira; não me dês nem riqueza e nem pobreza, concede-me o meu pedaço de pão” (Pr 30,8). O pão simboliza o alimento. É o pobre que pede o alimento para a sua própria subsistência.

O apelo profético do livro do Terceiro Isaías tem que continuar sempre vivo nas comunidades cristãs de todos os tempos: o jejum que agrada a Deus é “repartir o teu pão com o faminto, em recolheres em tua casa os pobres desabrigados, em vestires aquele que vês nu e em não te esconderes daquele que é tua carne” (Is 58,7).

            “O perdão das dívidas!” Na realidade das comunidades cristãs muitas pessoas estavam enfrentando dívidas. Em Mateus 18, 23-35, há uma parábola que expressa bem essa realidade, nos últimos versículos lemos: “Então o senhor mandou chamar aquele servo e lhe disse: ‘Servo mau, eu te perdoei toda a tua dívida, porque me rogaste. Não devias, também tu, ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?’ Assim, encolerizado, o seu senhor o entregou aos verdugos, até que pagasse toda a sua dívida. Eis como meu Pai celeste agirá convosco, se cada um de vós não perdoar, de coração, ao seu irmão” (18,32-34).

O perdão de Deus exige justiça! Deus é misericordioso, ele sempre nos concede o seu perdão (Sl 25,11.18; 32,1; 79,9). Mas a maneira de receber o perdão de Deus é perdoando e vivendo o amor: “Porque a todo aquele que tem será dado e terá em abundância, mas daquele que não tem até o que tem lhe será tirado” (25,29). Assim, o perdão e o amor de Deus devem nos levar a perdoar e amar as pessoas com as quais convivemos e entramos em contato em nosso dia a dia assumindo a mesma atitude do Pai. O caminho do perdão e do amor não é fácil, é um aprendizado constante!

            “Não nos submetas à tentação”. Não pedimos a Deus que ele afaste de nós as tentações, mas que nos forças para superá-las. Há muitas forças que nos arrastam para o caminho do mal. Somos pessoas frágeis e só podemos vencer com o auxílio de Deus. Com esse pedido, expressamos nossa confiança em Deus que é maior do que a realidade do mal. É preciso acreditar que o bem sempre vence.

            “Livra-nos do Maligno” é o último apelo da oração do Pai-nosso. Esta súplica só aparece no evangelho de Mateus. Nos evangelhos, o Maligno é aquele que luta contra o reinado de Deus e impede que a semente do reino de Deus crie raízes no coração das pessoas: “Vem o Maligno e arrebata o que foi semeado no seu coração. Esse é o que foi semeado à beira do caminho” (13,19). Ele é o responsável pela presença do mal: “Veio o inimigo e semeou o joio no meio do trigo e foi-se embora” (13,25). A todo o momento somos tentados pelo mal.

            O mal muitas vezes está dentro de nós mesmos, como afirma a carta de Tiago: “Ninguém, ao ser provado, deve dizer: ‘É Deus que me prova’, pois Deus não pode ser provado pelo mal e a ninguém prova. Antes, cada qual é provado pela própria concupiscência, que o arrasta e seduz” (Tg 1,13-14). Que o Pai nos livre do mal. Essa oração é um programa de vida para a pessoa cristã e um guia para uma vida cristã coerente. A última palavra é o amém. A nossa confirmação de que estamos de acordo com esse projeto e ao nosso compromisso de dar continuidade ao projeto do Reino. Que o nosso Pai esteja conosco hoje e sempre, amém!

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

5. O evangelho de Jesus Cristo crucificado. Uma leitura de Gl 2,11-21

 

O EVANGELHO DE JESUS CRISTO CRUCIFICADO

Uma leitura de Gl 2,11-21

Shigeyuki Nakanose, svd

Maria Antônia Marques

 

Resumo:

            Além do evangelho do imperador romano, Paulo enfrenta “outro evangelho” (Gl 1,7), baseado na observância da lei da pureza, que justifica a segregação nas comunidades gálatas. Ele prega o “verdadeiro evangelho” (Gl 2,5), fundamentado na justiça que vem da fé no amor e na graça de Jesus Cristo crucificado (Gl 5,1-12), construindo a união das pessoas sem as barreiras ética, social e de gênero (Gl 3,28).

 

 

            Na véspera do Natal, um menino estava vendendo doce caseiro em frente a um supermercado. Era um dia chuvoso e frio. O olhar dele estava triste e perdido. Nos ônibus, no metrô, nas praças e ruas de nossas cidades e nas portas de nossas igrejas há muitas pessoas com esse mesmo semblante. A situação de miséria é muito grande, e muitas vezes perdemos a sensibilidade diante das pessoas que sofrem. Em 2019, o Brasil tinha 4,4 milhões de crianças em situação de extrema pobreza. Com a pandemia da covid19, os números são ainda maiores. Muita gente está crucificada pela miséria, fome, violência, humilhação...

            Por volta do ano 50 d.C., Paulo conviveu com a gente crucificada pelo Império Romano: “Até o presente, passamos fome e sede, estamos mal vestidos, somos maltratados, não temos morada certa, e nos cansamos trabalhando com as próprias mãos. Somos amaldiçoados, e bendizemos. Somos perseguidos, e suportamos. Somos caluniados, e encorajamos. Até agora, nos tornamos como o lixo do mundo, a escória de todos” (1Cor 4,11-13).[1] Nessa realidade, Paulo pregou o evangelho de Jesus Cristo crucificado contra o evangelho do Imperador e o do judaísmo oficial e legalista.

 

1. O evangelho de Jesus Cristo crucificado

           

O termo “evangelho” (euangelion em grego) era usado na propaganda e no culto ao imperador romano (cf. HORSLEY, 2004, 21-32; HARRISON, 2016, 165-184). Os arautos, funcionários encarregados de divulgar os decretos, as campanhas, as vitórias e os avanços do Império partiam de Roma para todas as principais cidades e, quando lá chegavam, iniciavam o seu anúncio com as palavras: “Boa Nova” de César, filho de Deus, ao povo da cidade.  

Há várias inscrições descobertas que contêm o termo evangelho usado pelo imperador romano César Augusto (27 a.C.-14 d.C.). Nelas, o imperador Augusto, o senhor do Império e da terra, foi proclamado como “filho divino” e “salvador” (soter em grego), porque foi ele que estabeleceu na terra a paz e a salvação definitivas, tanto para o passado como para o presente e o futuro. Seu nascimento e sua manifestação – advento e epifania – foram descritos, nas inscrições, como evangelho poderoso!

                Com uma boa infraestrutura (exército, estrada, correio, hospedaria, administração da cidade etc.), o Império propagava o seu evangelho nas celebrações públicas com muita pompa, para agitar, atrair, influenciar e controlar o povo! O evangelho do imperador era uma das “armas poderosas” para impor e legitimar o poder e a dominação do Império, ditando e moldando o cotidiano do povo dominado e sofrido, como o da Ásia Menor e o da Grécia. 

            Foi a esse mundo do Império Romano que Paulo, um judeu convertido ao movimento de Jesus Messias, se dirigiu, anunciando o evangelho alternativo, manifestado em Jesus Cristo crucificado (Gl 3,14), para converter o mundo em uma assembleia (ekklesia) bem diferente. Ele tentou construir comunidades da “partilha e do serviço” nesse mundo do “acúmulo e da dominação” do Império.

            O fato de Paulo pregar a palavra e a prática de Jesus judeu é significativo. Denota que o evangelho de Jesus Cristo crucificado tem suas raízes no judaísmo. A “Boa Nova” é moldada pela história dos valores culturais e das identidades dos judeus que transparecem na Escritura:

 

a)    “Aquele que me anunciou, dizendo: ‘Saul está morto’, quando achava que era portador de boa notícia, eu o agarrei e o matei em Siceleg. Este foi meu pagamento a ele pela boa notícia” (2Sm 4,10). No Antigo Testamento, o termo evangelho, besorah em hebraico (euangelion na LXX, Septuaginta – a versão dos Setenta), originalmente, designa a recompensa pelo anúncio de uma vitória, ou também o próprio anúncio de uma boa nova como a de uma vitória sobre o inimigo.

b)    “Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz a boa notícia, que anuncia a salvação, que diz a Sião: ‘Seu Deus reina’” (Is 52,7). Durante o exílio da Babilônia, o Segundo Isaías profetiza que os mensageiros acorrerão ao país para anunciar o evangelho, “boa notícia” (salvação): Javé inaugurará o seu reinado da justiça e da graça em Sião (cf. Is 52,1-12).

c)    “O espírito do Senhor Javé está sobre mim, porque Javé me ungiu, Ele me enviou para dar a boa notícia aos pobres, para curar os corações feridos, para proclamar a libertação dos escravos e pôr em liberdade os prisioneiros” (Is 61,1). Diante da exploração econômica e da escravidão no período pós-exílico, o Terceiro Isaías anuncia o evangelho da salvação de Javé para inverter a realidade sofrida do povo, pela exploração dos teocratas judeus, aliados e servidores do Império Persa: Javé protege a vida, sobretudo das pessoas empobrecidas (cf. Is 65,17-25).

d)    “Cantem para Javé, bendigam o seu nome! Proclamem, dia após dia, a sua vitória (boa notícia ou salvação). Majestade e esplendor estão à sua frente, força e ornamento em seu santuário” (Sl 96,2.6). No judaísmo oficial do templo, os teocratas (o grupo de Neemias e Esdras) pregam a salvação pela realização de certos ritos cultuais no templo (sacrifícios de expiação, jejuns) e pela observância da Lei (sábado, circuncisão, lei do puro e do impuro etc.), desprezando, contudo, os preceitos elementares de justiça social e de amor ao próximo.

 

Paulo, um judeu fariseu do judaísmo oficial, pregava o evangelho (salvação) pela observância da Lei, submetendo o povo ao jugo do enorme aparato de prescrições referentes ao puro e impuro. Inclusive, para a visão escatológica dos fariseus, a salvação chegará quando os gentios participarem do povo de Israel pela observância da Lei, sobretudo pela prática da circuncisão. Quando todos forem praticantes irrepreensíveis da Lei, então a salvação virá!

Ao aceitar a fé em Jesus Cristo crucificado, Paulo, porém, mudou de um modo fariseu de ver a Deus e ler a Escritura para outra visão e vivência do judaísmo (cf. ARBIOL, 2018, 45-85). Como homem bem educado e estudado na Escritura, ele começou a pregar e praticar o evangelho do judaísmo popular da libertação dos pobres, condenados pela lei do puro e do impuro: “E como o anunciarão, se não forem enviados? Como está escrito: ‘Como são belos os pés dos que anunciam boas notícias!’ Mas nem todos obedeceram ao evangelho” (Rm 10,15-16a).

Paulo adapta o texto de Is 52,7, escrito pelo grupo do Segundo Isaías que exerceu suas atividades entre os desterrados na Babilônia. O evangelho do grupo assegura a todos a vida por meio da partilha e da solidariedade (cf. Is 55,1-3), o que Paulo anuncia como “boas notícias” ao longo da sua atividade missionária. Por isso, o termo evangelho aparece como uma marca registrada de Paulo nos seus escritos. Das 76 vezes em que o termo “evangelho” é empregado no Novo Testamento, 48 encontram-se nas “cartas genuinamente consideradas” como as de Paulo. 

É notável também que o significado do evangelho de Paulo é marcado pela cruz de Jesus Cristo: “Anunciamos Cristo crucificado” (1Cor 1,23); “Pois Cristo me enviou, não para batizar, mas para anunciar o evangelho, sem usar a sabedoria da linguagem, para que a cruz de Cristo não se torne inútil. De fato, a linguagem da cruz é loucura para os que se perdem. Mas, para os que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,17-18).

A crucificação, uma pena cruel, era loucura para o povo do tempo de Paulo. No contexto judaico, de modo particular, o que era dependurado na árvore se tornaria objeto da maldição de Deus (cf. Dt 21,22-23). Por isso, Jesus de Nazaré, condenado pelos sumos sacerdotes e pelo sinédrio, devia ser visto como um homem amaldiçoado e considerado transgressor da Lei e dos rituais do puro e impuro. E, de fato Jesus, foi visto assim por muita gente do judaísmo oficial, pessoas que entendiam que as doutrinas, como a teologia da retribuição, as leis religiosas, como as da pureza, do sábado, os rituais e as liturgias tinham mais importância que a vida, e que a transgressão de alguma parte delas justificava castigos, violências e até mesmo a morte. Porém, o evangelho, a “Boa Notícia”, de Jesus de Nazaré contrasta frontalmente com esta forma de viver a religião e a espiritualidade. O evangelho de Jesus nos ensina a centralidade da pessoa humana (cf. Mc 2,27).

Por isso, para Paulo, o fato de Jesus Cristo, que conviveu com os pecadores e morreu na cruz por amor ao próximo, ser reconhecido como o Messias servo e o Filho de Deus (Gl 4,4), é a mensagem essencial de que o Deus da promessa a Abraão não é um Deus que reconhece a pessoa em virtude das obras da Lei, mas de sua prática de amor ao próximo (Gl 3,8-14). A fidelidade ao evangelho do Jesus Cristo crucificado deve ser traduzida na prática do bem e em favor da vida plena do ser humano: cooperação mútua, igualdade, unidade etc. (Gl 3,26-29: cf. DUFF, 2017, 111-192).

O evangelho da cruz, como centro de todo ensinamento cristão, deve ser difundido na vida cristã do dia a dia. Com esta proposta, Paulo incansavelmente desempenhou-se na missão no meio dos gentios, ajudando a fundar as comunidades dos seguidores e seguidoras de Jesus Cristo na Ásia Menor, Macedônia e Grécia. Algumas delas foram as comunidades gálatas. Com grande entusiasmo, os gálatas haviam acolhido o evangelho de Jesus Cristo crucificado, o que suscitou o sonho de vida e liberdade para quem vivia sob o jugo da sociedade escravagista do Império. Porém, o entusiasmo durou pouco. As comunidades “abandonaram tão depressa a graça de Cristo”:

 

Fico admirado de que vocês, para seguirem outro evangelho, tenham abandonado tão depressa aquele que os chamou mediante a graça de Cristo. Não existe outro evangelho. No entanto, alguns estão deixando vocês confusos, querendo distorcer o evangelho de Cristo. Maldito seja aquele que anunciar a vocês outro evangelho, ainda que sejamos nós mesmos ou algum anjo do céu (Gl 1,6-8).

 

Com a Escritura na mão, o grupo judaizante, que anunciava outro evangelho baseado na observância da Lei, agitou e provocou uma crise nas comunidades gálatas, minou inclusive a autoridade apostólica de Paulo. Informado da grave ameaça para a fé centralizada na cruz de Jesus Cristo, Paulo escreve a carta aos Gálatas, cheia de ira e paixão, para defender o evangelho de Jesus Cristo crucificado. Já na primeira parte da carta (Gl 1,11-2,21), ele narra o incidente com o grupo judaizante em Antioquia, acusando-o de “hipócrita da Lei”.  Defende o seu evangelho, baseado na fé no amor e na graça de Jesus Cristo, manifestado na cruz (cf. CROSSAN; REED, 2002, 167-215; HEYER, 2008, 165-179; SCHREINER, 2010, 31-59).

 

2. Justificados pela fé em Jesus Cristo crucificado

 

Diante da grave ameaça para a fé em Jesus Cristo crucificado e a acusação contra a sua autoridade apostólica nas comunidades gálatas, Paulo levanta o argumento histórico e existencial contra os seus opositores judaizantes (Gl 2,11-14), para expor o seu ensinamento sobre o evangelho de Jesus Cristo crucificado (Gl 2,15-21). É uma síntese de seu pensamento sobre a salvação pela fé no amor de Jesus Cristo, não pelo cumprimento da Lei, o resumo conciso de seu ensino, bem ilustrado e argumentado por um fato histórico ocorrido na importante comunidade de Antioquia, uma base importante de expansão do evangelho de Jesus Cristo no meio dos gentios.

Paulo mesmo narra o incidente histórico: “Quando Cefas chegou a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, porque ele merecia repreensão. De fato, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele comia com os gentios. Porém, depois que chegaram aqueles de Tiago, ele evitava os gentios e se afastava, com medo dos circuncidados. E outros judeus caíram no mesmo fingimento de Cefas, a tal ponto que até mesmo Barnabé se deixou levar pelo fingimento deles” (Gl 2,11-13).

Cefas, ou seja, Pedro, chegou a Antioquia. Ele nunca tinha vivido numa comunidade mista onde judeus e gentios conviviam em irmandade. Adotou os hábitos normais à mesa da comunidade de Antioquia e foi tomar as refeições com os gentios, desprezando as normas restritivas do puro e do impuro. Porém, o comportamento aberto de Pedro com os fiéis de Antioquia não durou muito tempo. “Alguns da parte de Tiago” (os “circuncidados”) chegaram de Jerusalém, insistindo na aplicação das leis alimentares com maior rigor (cf. KEENNER, 2019, 152-166).  

Eles deviam ser os “falsos irmãos” (Gl 2,4), cristãos judaizantes radicais (cf. At 15,1), que exigiam dos gentios cristãos a observância da Lei em sua totalidade (os 613 mandamentos), incluindo a circuncisão e as leis alimentares (não comer porco, não comer carnes sacrificadas a ídolos, não comer com os gentios etc.). Lutavam pela imposição da Lei para todos os membros da comunidade cristã, inclusive os gentios crentes em Jesus Cristo.   

Diante dos olhos dos judaizantes radicais, Pedro evitou comer com os gentios. Outros judeus da comunidade, incluindo Barnabé, caíram no mesmo fingimento de Pedro. O fato foi grave, pois ele não somente era judeu, mas também membro da comunidade-mãe de Jerusalém, que determinava as normas de comportamentos dos judeus crentes em Jesus Cristo. O gesto hipócrita de um líder da igreja contagiou os outros e pôs tudo a perder, chegando até mesmo a desviar a comunidade do “verdadeiro evangelho”: “Quando, porém, vi que não agiam corretamente segundo a verdade do evangelho, então eu disse a Cefas diante de todos: ‘Se você é judeu e vive como os gentios, e não como os judeus, como pode obrigar os gentios a viver como os judeus’” (Gl 2,14: cf. PESCE, 2017, 168-172).

            O verdadeiro evangelho é, antes de tudo, a própria pessoa de Jesus de Nazaré crucificado, que praticou a justiça e deu a vida por puro amor ao próximo. A cruz de Jesus é fonte da liberdade, da irmandade e da vida. A salvação, portanto, não é realizada pelas obras da Lei, mas, sim, pela graça de Deus manifestada na vida de Jesus Cristo crucificado. Pela prática do verdadeiro evangelho de Jesus Cristo, a pessoa é considerada justa e passa da morte para a vida, o que Paulo chama de “justificação”: “O homem não é justificado pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo. E nós cremos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da Lei. Porque pelas obras da Lei, ninguém será justificado” (Gl 2,16-17; cf. 3,8.11.24; 5,4: cf. DeSILVA, 2018, 216-262).

O grupo judaizante admite que a promessa da salvação aos descendentes de Abraão poderia ser estendida aos gentios “pecadores”, como Paulo ironicamente declara: “Nós somos judeus de nascimento, e não gentios pecadores” (Gl 2,15; cf. Rm 2,12). Porém, para serem salvos, ou seja, justificados por Deus, os gentios têm de viver como judeus, filhos de Abraão. Devem observar a Lei, que abrange todos os aspectos da vida e provoca consequentemente desigualdade e segregação ética, religiosa, cultural e de gênero.    

Na vida da comunidade, a justificação, a salvação antecipada, deveria acontecer na irmandade sem as barreiras raciais, sociais e sexuais, manifestada, por exemplo, na eucaristia na qual a comunidade deveria confessar realmente a presença de Jesus Cristo, com todos os seus membros partilhando a caridade. Com a implantação da Lei, como a circuncisão e as leis alimentares, a irmandade da comunidade seria dividida e destruída, portanto não poderia haver eucaristia, a comunhão mútua (cf. 1Cor 11,17-34).      

Paulo já havia negado e combatido a justificação pela Lei, no processo da mudança: “Considero tudo como perda, diante do bem superior que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado nele. E isso, não tendo mais como justiça minha aquela que vem da Lei, mas aquela que vem de Deus e se baseia na fé” (Fl 3,8-9). Ao apresentar o seu próprio esvaziamento, Paulo faz forte crítica contra os judaizantes que propõem confiança na observância da Lei para abrir as portas da salvação.  Para ele, a cruz de Jesus é o ponto de partida da libertação de tudo o que escraviza e diminui a vida. 

Desde o ingresso ao movimento de Jesus Cristo, Paulo afirma ter deixado o caminho da salvação pela observância da Lei e continuava pregando a salvação pela graça e pelo amor de Jesus Cristo crucificado. Por isso, ele responde aos seus opositores: “De fato, se eu volto a construir as coisas que havia destruído, aí sim eu me mostro um transgressor” (Gl 2,18). Ele ironicamente pergunta: eu necessito da Lei para salvar-me? Aí sim, sou pecador ao não cumprir a Lei. Para ele, submeter-se à Lei outra vez como no tempo de Saulo fariseu, perseguidor dos seguidores de Jesus Cristo, seria envolver-se novamente no jugo da escravidão da Lei: promover o pecado da segregação, desigualdade e marginalização das pessoas.

E, o que é mais grave, o grupo judaizante faz impor aos gentios a canga da escravidão da Lei, em nome do evangelho de Jesus Cristo, baseado na observância da lei da pureza. É por isso que Paulo não se contém e afirma com vigor: “Com efeito, pela Lei eu morri para a Lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo” (Gl 2,19).

Desde a primeira página da carta aos Gálatas, Paulo reforça a mesma ideia: “Senhor Jesus Cristo, que se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos livrar do mundo mau” (Gl 1,3-4). A cruz de Jesus é o resultado da sua fidelidade à missão da justiça e compromisso com seus irmãos até o fim, no “mundo mau”. Por seu amor gratuito, Jesus deu sua vida por nós. Ser cristão não é basear a própria vida e a da comunidade nas obras da Lei, para obter a salvação. Ao contrário, deve “morrer para a Lei a fim de viver para o Deus da vida” e viver no amor gratuito do Jesus Cristo crucificado, ou seja, “estar crucificado com Cristo” (Gl 6,14).

No batismo, o que Paulo ou qualquer cristão, de ontem e hoje, deve assumir: estar crucificado, morrer e ressuscitar para Deus. “Quero assim conhecer a Cristo, o poder da sua ressurreição e a comunhão nos seus sofrimentos, assumindo a mesma forma da sua morte, para ver se de alguma forma alcanço a ressurreição dentre os mortos” (Fl 3,10-11), confessa Paulo. Conhecer Jesus Cristo crucificado e ressuscitado é viver no amor e na graça do Deus da vida, que transforma a morte em “nova vida” (Rm 6,4).

Por isso, acreditar e pregar o evangelho da cruz é colocá-lo no centro da vida e viver na mais profunda comunhão com Jesus Cristo, a ponto de poder dizer: “E já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim. E a vida que vivo agora na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20). É a declaração existencial de Paulo na caminhada missionária: “Trazemos sempre em nosso corpo a agonia de Jesus, para que em nosso corpo também se manifeste a vida de Jesus” (2Cor 4,10; cf. Rm 8,9-10).

Ser fiel à “vida de Jesus” é viver no amor gratuito de Jesus Cristo crucificado, não na acomodação escravizadora do ritualismo, do moralismo e da estrita observância da Lei para obter a salvação de Deus. Basear a vida em regras ou na observância da Lei que obriga Deus a retribuir aos “justos” seria a negação da graça de Deus, dada na cruz de Jesus: “Não torno inútil a graça de Deus. Porque, se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu inutilmente” (Gl 2,21; cf. 3,21-22).

 

3. O escândalo da cruz

 

A centralidade da cruz no evangelho de Paulo transparece em suas palavras:

 

·         “Pois Deus não nos destinou para a ira, e sim para possuirmos a salvação por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele morreu por nós, para que, acordados ou dormindo, vivamos com ele” (1Ts 5,9-10).

·         “Irmãos, sejam meus imitadores e observem os que vivem de acordo com o modelo que em nós vocês têm. Porque eu já lhes disse muitas vezes, e agora repito chorando: há muitos que vivem, como inimigos da cruz de Cristo” (Fl 3,17-18).

·         “Pois Cristo me enviou, não para batizar, mas para anunciar o evangelho, sem usar a sabedoria da linguagem, para que a cruz de Cristo não se torne inútil. De fato, a linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, Mas, para os que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,17-18).

 

A última palavra de Paulo menciona a “loucura” para um judeu fariseu pelo fato de acreditar em Jesus humilhado e crucificado como o Messias de Javé, o Filho de Deus. Pois o Messias, “Ungido”, aparecia, na corrente oficial do judaísmo, como um rei poderoso da casa de Davi: “Eu ungi o meu rei sobre Sião, minha montanha santa! Proclamarei o decreto de Javé, que disse para mim: ‘Você é meu filho, hoje eu gerei você!’” (Sl 2,6-7; cf. 2Sm 7,12-16). O Messias esperado haveria de derrotar seus inimigos, e, por isso, não seria humilhado e crucificado por eles. A cruz seria um escândalo!

Paulo mesmo expressou a cruz como a humilhação (Fl 2,8) e a maldição (Gl 3,13). Entretanto, ele ingressou no movimento de Jesus, converteu-se de um modo farisaico de ver a Deus, a Escritura, as pessoas e as coisas, e passou a fazer parte desta outra corrente do judaísmo, que via e seguia Jesus Cristo como o justo rejeitado (cf. Sb 1,12-14. 2,12-20) e, sobretudo o servo sofredor: “Oprimido, ele se humilhou, não abriu a boca. Para este grupo, Jesus é cordeiro levado ao matadouro, como ovelha muda diante do tosquiador, ele não abriu a boca. Foi preso, julgado injustamente. E quem se preocupou com a vida dele? Pois foi cortado da terra dos vivos e ferido de morte por causa da transgressão do meu povo” (Is 53,7-8).   

Paulo não cita de modo claro os cânticos do servo de Isaías, mas alude a eles de modo implícito ao falar da vida e da missão de Jesus (cf. ARBIOL, 2018, 57-59):

 

·         "Vejam meu servo, a quem eu sustento. Ele é o meu escolhido, nele tenho o meu agrado. Eu coloquei sobre ele meu espírito, para que promova o direito entre as nações” (Is 42,1). Graças ao Espírito de Javé, o servo promove a sua missão no meio de todas as nações.

·         A missão do servo sem o poder da força e da violência é realizar a justiça e promover, na fidelidade, o direito para todo o povo, sobretudo para as pessoas empobrecidas e enfraquecidas (Is 42,2-7).

·         A missão do servo é marcada pela escuta da palavra de Deus, pela fidelidade no anúncio, pela perseguição e resistência (Is 50,4-11).

·         A morte do servo sofredor é consequência da sua prática da justiça e da sua fidelidade até o fim (Is 53,1-9).

·         O texto do servo insiste na substituição do sacrifício de expiação pela prática da solidariedade (Is 53,10).

·         Ele morre, mas a sua vida terá continuidade por meio de seus descendentes. O projeto da justiça e do direito para os pobres triunfará (Is 53,11).  

 

Paulo assume a identificação de Jesus Cristo crucificado como o servo sofredor e desenvolve sua fé e missão na linha da missão do servo: o projeto da justiça e do direito para toda a terra. Leva o evangelho de Jesus Cristo, Messias crucificado, como a fonte da graça e da benção de Deus para os gentios na Galácia, Macedônia e Grécia. Ao anunciar e prometer bênçãos (Boa Nova) de Jesus Cristo crucificado para todos os povos, Paulo enfrenta opções rivais, como o evangelho do imperador a serviço dos interesses do império e o judaísmo oficial baseado na observância da Lei, bem como das pessoas que seguiam Jesus e ainda estavam vinculadas a esse judaísmo.

De suas cartas, deduz-se que Paulo converte o “escândalo da cruz” em seu ensinamento central para combater e argumentar contra os seus opositores (o Império e o judaísmo oficial), e para dialogar com suas comunidades em problemas:

 

a)     “Nós anunciamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para as nações. No entanto, para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus. [...] Deus, no entanto, escolheu o que é loucura no mundo para desacreditar os sábios. E Deus escolheu o que é fraqueza no mundo para desacreditar os fortes. E Deus escolheu o que é insignificante e sem valor no mundo, coisas que nada são, para reduzir a nada as coisas que são. E isso para que nenhuma criatura se glorie diante de Deus” (1Cor 1,23-24.27-29). No seu trabalho para com os pobres, “o lixo do mundo e a escória de todos” (1Cor 4,13), Paulo percebe e compreende que Deus escolhe as pessoas pobres e insignificantes para manifestar sua força, tal como é revelada em Jesus Cristo crucificado. Isso seria uma oposição e crítica contra o caminho do poder e violência.   

b)    “Aqueles que querem aparecer na carne são os que forçam vocês a circuncidar-se. E o fazem só mesmo para não serem perseguidos por causa da cruz de Cristo. Porque nem mesmo aqueles que se fazem circuncidar observam a Lei. No entanto, eles querem que vocês se façam circuncidar, para assim se vangloriarem da carne de vocês. Quanto a mim, que eu nunca me vanglorie, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Por meio dele, o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo” (Gl 6,12-14). Concluindo a carta ao Gálatas, Paulo confirma a sua acusação ao grupo judaizante radical de falsidade: insistir na prática da Lei para evitar a perseguição; obrigar os gentios crentes em Jesus Cristo a observar a Lei. O argumento crítico dele está na cruz de Jesus Cristo, em sua morte por amor às pessoas injustiçadas no “mundo mau”. Ao pregar e experimentar o evangelho da cruz, Paulo traz seu corpo as marcas de Jesus Cristo. 

c)    “Portanto, de agora em diante, não julguemos mais uns aos outros. Em vez disso, tenham o propósito de não ser causa de tropeço ou escândalo para o irmão. Eu sei, e estou convencido no Senhor Jesus, que nada é impuro em si mesmo. Mas se alguém considera uma coisa como impura, esta coisa se torna impura para ele. Porém, se você deixa seu irmão entristecido por questão de alimento, você já não está agindo por amor. Com o alimento que você come, não cause a perdição de alguém pelo qual Cristo morreu” (Rm 14,13-15). Paulo aborda um dos problemas cotidianos da convivência cristã: certas normas alimentares da pureza. Prega a tolerância e o amor ao próximo, por quem Jesus Cristo viveu, morreu e ressuscitou (1Cor 8,11). O amor manifestado na cruz de Jesus deve ditar a edificação mútua das pessoas na comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus Cristo.   

 

A força do amor e da graça que Paulo descobre na cruz de Jesus está em oposição à grande ambição do ser humano: querer colocar-se no lugar de Deus. Jesus, o Filho de Deus, podendo exercer o poder, “esvaziou-se a si mesmo e tomou a forma de escravo, tornando-se semelhante aos homens” (Fl 2,7). Nesse esvaziamento e humilhação de Deus, manifesta-se o poder de viver, amar e servir aos próximos: “A vida que vivo agora na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20).

 

4. Uma palavra final

 

Deus continua pondo-se ao lado dos crucificados de hoje. A presença maciça dos crucificados se faz realidade em nosso Brasil, que ocupa o segundo lugar na má distribuição de rendas entre a sua população, atrás somente de Catar. No Brasil, os 1% mais rico concentram 28,3% da renda total do país (no Catar essa proporção é de 29). Ou seja, quase um terço da renda está nas mãos dos mais ricos.

Sabemos quem são as pessoas crucificadas de hoje? Depende de cada um. Depende da experiência do nosso cotidiano. Basta olhar ao nosso redor com a mínima sensibilidade humana: crianças mendigando nas ruas, crianças doentes morrendo apenas por causa da falta de alimentação e de cuidados básicos, os moradores das ruas, os milhões de desempregados em busca de trabalho etc. Ou – para as pessoas cristãs – olhar com a fé em Jesus Cristo crucificado e seu evangelho. São os olhares dos servos sofredores que marcam, orientam e ditam a vida cristã. Olhares que fazem repensar e alimentar nossa pastoral, nossas liturgias, catequeses, teologias, ações sociais e o jeito de ler a Escritura.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

ARBIOL, Carlos Gil. Paulo na origem do cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2018.

CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Em busca de Paulo: como o apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007.

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HEYER, C. J. den, Paulo, um homem de dois mundos. São Paulo: Paulus, 2008.

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HORALEY, Richard A (org.). Paulo e o império: religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004.

KEENER, Craig S. Galatians: a commentary. Grand Rapids, Michigan: Baker Academic, 2019.

PESCE, Mauro. De Jesus ao cristianismo. São Paulo: Loyola, 2017.

SCHREINER, Thomas R. Galatians. Grand Rapids, Michigan: Zondervan Academic, 2010. (Zondervan Exegetical Commentary on the New Testament).

 

 



[1] Os textos foram extraídos da Nova Bíblia Pastoral, São Paulo: Paulus, 2015.

4. O evangelho de Jesus Cristo crucificado: "É para a liberdade que Cristo nos libertou" (Gl 5,1)


O EVANGELHO DE JESUS CRISTO CRUCIFICADO: “É PARA A LIBERDADE QUE CRISTO NOS LIBERTOU” (Gl 5,1)

Entendendo a carta aos Gálatas

Shigeyuki Nakanose, svd

Maria Antônia Marques

 

 

Vocês sabem que foi por causa de uma doença física que lhes anunciei o evangelho pela primeira vez. E apesar de minha carne ter sido para vocês uma provação, vocês não me desprezaram nem rejeitaram. Pelo contrário, me receberam como a um anjo de Deus, como a Cristo Jesus. Onde foi parar a alegria que tinham? Pois eu sou testemunha disto: se fosse possível, vocês arrancariam os próprios olhos e os dariam a mim. Será que me tornei inimigo de vocês, por lhes dizer a verdade? (4,13-16).[1]

 

Recordando o modo inusitado do nascimento das “igrejas da Galácia” (1,2), Paulo lhes escreveuma carta direta e personalizada, para que elas se esforcem por clarificar as ideias perturbadas pela intervenção do grupo judaizante evoltem aviver na liberdade, igualdade e unidade à luz da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.

Por volta do ano 53/54 d.C., as comunidades gálatas entraram em crise. Os convertidos gálatas, não judeus (“gentios" ou estrangeiros) em sua maioria, foram “enfeitiçados” pelo grupo de tendência judaizante, isto é, o modo de viver como judeus segundo a cultura e os costumes judaicos, e caíram sob o jugo da Lei: “Ó gálatas sem juízo! Quem foi que os enfeitiçou, a vocês que tinham diante dos olhos os traços bem claros de Jesus Cristo crucificado?Quero saber somente isto de vocês: foi pelas obras da Lei que vocês receberam o Espírito, ou foi pela aceitação da fé?” (3,1-2).

O grupo judaizante radical (1,7; 4,17; 5,7-12; 6,13) tentou impor aos convertidos gálatas a circuncisão – que ocupava lugar central no judaísmo oficial, o sinal da aliança com Deus Javé – como meio de alcançar a salvação, e atacou o evangelho e a prática pastoral de Paulo: “Não existe outro evangelho. No entanto, alguns estão deixando vocês confusos, querendo distorcer o evangelho de Cristo” (1,7).

No dizer de Paulo, o grupo judaizante radical anuncia outro evangelho, baseado na justiça pela observância da Lei, provocando e justificando a segregação e a desigualdade nas comunidades gálatas e até a escravidão no mundo greco-romano. O grupo desvirtuao evangelho baseado na justiça que vem da fé no amor e graça de Cristo Jesus crucificado: “Nós, com efeito, aguardamos ansiosamente no Espírito a esperança daquela justiça que vem da fé. Pois, em Cristo Jesus, nem a circuncisão nem a incircuncisão têm valor algum, e sim a fé que age através do amor” (5,5-6).

            A discriminação, adesigualdade e amarginalização das pessoas são intoleráveis para a “verdade do evangelho” (2,5), segundo a liturgia batismal, citada por Paulo:“não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vocês são um só em Cristo Jesus” (3,28). Afinal, quem é Paulo que prega a unidade das pessoas sem as barreiras racial, social e de gênero?

 

Conhecendo Paulo

 

Considero tudo como perda, diante do bem superior que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado nele. E isso, não tenho mais como justiça minha aquela que vem da Lei, mas aquela que vem de Deus e se baseia na fé (Fl 3,8-9).

 

            Paulo, “circuncidado no oitavo dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus” (Fl 3,5), aderiu à fé e ao amor de Cristo Jesus. O judeu,“perseguidorda Igreja” (Fl 3,6; cf. Gl 1,13),transformou-se em seguidor de Jesus crucificado.Ele passou a pregara mensagem da justificação pela obra da fé, pelo esforço do amor e pela constância da esperança no Senhor Jesus Cristo (cf. 1Ts 1,3).

Segundo a prática religiosa da sinagoga do seu tempo, Paulo, um judeu fariseu, bastante cônscio de seu trabalho em observar a Lei de Moisés, pregava a salvação pela observância da lei da pureza, a obra salvífica que era justificada pela fé no Deus poderoso e castigador (cf. Dt 30,15-18) e argumentada pela teologia da retribuição – que Deus retribuía saúde, riqueza e vida longa para quem observava a Lei, com a exigência dos sacrifícios de purificação, o pagamentodos dízimos etc. (cf. Lv 26; Dt 28; Ml 3,6-12). Dessa forma, seria possível manipular Deus conforme a justiça pela observância da Lei. Observa a Lei, eDeus é obrigadoa retribuir ea ajudar a pessoa “justa”.    

Como fariseu, Paulo desprezava e discriminava os pobres, os doentes e os estrangeiros como impuros, pois eleseram vistos como pessoas queinfringiama Lei. Em sua prática da Lei, Paulo tornou-se perseguidor do grupo dos judeus helenistas crentes em Jesus de Nazaré,acusado deestar pregando e perturbandoa ordem religiosa (Templo e Lei) de Jerusalém, que justificava o poder e as riquezas dos governantesjudaicos (cf. At 6,8-7,60). Paulo, um fariseu irrepreensível, um homem cheio de si e autossuficiente: “Quanto à Lei, fariseu;quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que há na Lei, sem reprovação” (Fl 3, 5-6; cf. 1Cor 15,9).

            No entanto, ele mudou a sua vida.Graças ao contato com a vivência comunitária e fraterna dosseguidores e das seguidoras de Jesus que sofriam perseguição(cf. At 9,10-19), Paulo, aos poucos, foi sendo tocado pelo amor gratuito de Jesus de Nazaré, ocrucificado, que seria “escândalo” para judeus (cf. Dt 21,22-23). Ele começou a acreditar que Jesus crucificado por Pilatosera o Messias de Javé, o Filho de Deus, como havia anunciado o Segundo Isaías, na forma do servo sofredor (cf. Is 42,1-9; 52,13-53,12). Ele descobriu que o projeto da vida foi manifestado na cruz de Jesus como graça de Deus, e não pela observância da Lei.

Na prática, Paulo abandonou o grupo dos judeus fariseus, comoseu modo legalista e ritualista de ver Deus, a Escritura, as pessoas e as coisas, e ingressou no movimento de Jesus Cristo crucificado, praticando e experimentando no dia a dia o amor gratuito e incondicional de Deus, sobretudo para com as pessoas enfraquecidas (cf. Is 52,1-12; 53,11; 61,1-2). Em seu longo processode transformação e aprendizagem (1,15-18), ele começou a pregar a salvação pela prática do amor, a obra salvífica justificada pela fé na graça de Deus misericordioso, Pai e Mãe (cf. Os 11,1-4; 1Ts 2,1-12), ou seja, a teologia da gratuidade (cf. Jn 4; Rm 5,1-2). 

No trabalho missionário, Paulopregou e experimentou o evangelho que foi manifestado na cruz de Jesus Cristo, na qual Deus Pai manifestou o seu amor gratuito oposto à cobiça e ganância dos poderosos – a ação redentora de Deus na história (cf. Fl 2,6-11).Ao pregar e praticar o evangelho do amor gratuito para com os pobres, possivelmente Paulo estava se contrapondo apregações rivais, como o evangelho do imperador romanoque anunciava todos os seus projetos e vitórias, tudo o que era do interesse do impériocomo uma “Boa Nova” para o povo. Como pregador judeu, Pauloenfrentoua oposição do judaísmo tradicional, baseado na observância da Lei (cf. 1Ts 1,4-10; Fl 1,12-30).

            Sendo um judeu formado na cultura greco-romana – judeu helenista como Estevão e Filipe (cf. At 6,1-6) –, Paulo se formou nas comunidades helenistas de Damasco (cf. 1,17; 2Cor 11,32) e iniciou o seu trabalho missionário na comunidade de Antioquia da Síria (cf. At 11,19-30), em sua maioria judeus helenistas e não judeus, uma comunidadede língua grega, mais aberta à realidade multicultural e multirracialde Antioquia, a terceira maior cidade do Império Romano, depois de Roma e Alexandria. Nela a circuncisão e as leis alimentares judaicas não eram impostas aos seguidores gentios de Jesus Cristo.

            Com o tempo, a comunidade de Antioquia, com tal prática,entrou em conflito com a “igreja mãe de Jerusalém” (1,18-24), formada em sua maioria por judeus que acreditavam em Jesus como o Messias prometido, mas assumia uma prática mais tradicional,pregando um evangelho subordinado àstradições judaicas. A postura dos judaizantesera clara: os gentios poderiam participar das promessas feitas por Deus ao povo de Israel desde que estivessem dispostos a observar os preceitos da Lei.       

O conflitoem torno da Leiresultou na realização da primeira assembleia em Jerusalém,por volta do ano 49, cuja discussão foi sobre a imposição da circuncisão e de outros costumes judaicos aos gentiosque seguiam Jesus (2,1-10; cf. At 15). Apesar da dura oposição dos “falsos irmãos” (2,4), um grupo judaizante radical na igreja de Jerusalém, Paulo defendeu a prática missionária segundo a “verdade do evangelho” (2,3-5), e selou acordo com os apóstolos de Jerusalém. Eles consideravam sua missão restrita aos circuncidados, mas mesmo assim reconheciam e apoiavam a missão do grupo de Paulo “em favor dos gentios” (2,7-10).

            Entretanto, os “falsos irmãos” (cf. At 15,1.5), acreditavam na necessidade de todos os seguidores de Jesus se tornarem judeus e exigiam delesaobservância da Lei em sua totalidade, rejeitando o acordo firmado na assembleia de Jerusalém. Historicamente, a influência desses judaizantes radicais chegou à Macedônia, à Grécia e à Ásia Menor, causando conflito com a missão de Paulo. 

            Após a assembleia, Paulo desempenhou com maior vigor a sua missão para com os gentios. Na segunda viagem, durante 49-52 d.C., o grupo de Paulo realizou a missão em meio aos gentios da Ásia Menor, da Macedônia e da Grécia, fundando as comunidades na Galácia, Filipos, Tessalônica, Corinto etc. (At 15,36-18,23), comunidades compostas por judeus e gentios que tentavam viver a irmandade em nome de Jesus Cristo crucificado.

            Com o tempo, porém, as comunidades de seguidores e seguidoras de Jesuscomeçaram a enfrentarvários problemas: a oposição dos judeus, os “falsos circuncidados”, em Filipos (Fl 3,2); perseguições dos judeus e governantes romanos contraas pessoas que seguiamJesusem Tessalônica (cf. 1Ts 1,2-2,12); conflitos internos de vários grupos em Corinto,entre outros (cf. 1Cor 1,10-16). As comunidades de Corinto, por exemplo, já estavam apresentando o primeiro sinal do conflitoprovocado pelos grupos “espirituais” judeu-cristãos, que separavam a fé em Jesus Cristo da vida prática (cf. 1Cor 2; Jd 19; 1Jo 4,1-6). Era a enorme diversidade do cristianismo do século I, que seguirá muito forte ainda nos séculos seguintes, e que, de certa maneira continua ainda hoje.

As comunidades gálatas também não escaparam da crise provocada pela diversidade. Nelas, por volta do ano 53/54 d.C., surgiram os conflitos provocados pelos dois grupos principais: por um lado, o grupo “judaizante” tentava submeter à circuncisão e aos costumes judaicos os gentios que abraçaram a mensagem de Jesus, suscitando a segregação e a desunião nas comunidades (cf. 3,1-5,12); e por outro, o grupo “liberal” exagerava a liberdade cristã, desrespeitando qualquer mandamento e criando uma crise ética (cf. 5,13-26). De certa forma, essa situação crítica das comunidades gálatas era marcada pela realidade particular do povo da Galácia.

 

Conhecendo a Galácia

 

O nome Galácia deriva dos gauleses (gálatas), descendentes de antigos imigrantes celtas, provenientes do território da Gália (França, Bélgica, Itália etc.), que invadiram, em 279-277 a.C., o centro-norte da Ásia Menor (a região entre a Capadócia e o Ponto). Os gálatas foram subjugados pelo Império Romano em 189 a.C. Após um longo período de vassalagem, o reino gálata passou a ser a província romana de Gálatas, com a capital Ancira (hoje Ancara), em 25 a.C., ficando, desde então, sob a dominação da tirania romana.

Como província romana, o império reorganizou a Galácia propriamente dita, anexando-lheo centro-sul da Ásia Menor: a região da Frígia e Pisídia (Antioquia daPisídia, Icônio, Listra e Derbe, cidades refundadas como colônias romanas). Por isso, no tempo de Paulo, a Galácia era uma província do Império Romano na Anatólia Central (moderna Turquia): o centro-norte e o centro-sul da Ásia Menor. Entretanto, havia diferença entre as duas regiões: de um lado, a maioria dos habitantes do norte, chamados gálatas, era de etnia celta e falava a língua gálata, e, de outro, no sul da Galácia, com as cidades helenizadas e romanizadas, a maioria dos habitantes, também chamados gálatas, não era celta, mas umapopulação mista: romanos, gregos e judeus. Existiam várias colônias judaicasna região, como também sinagogas.

            Quanto à vida do povo, a Galácia era basicamente uma província rural agropecuária: produção de cereais, vinhos e pequenos rebanhos. A produção de lã era conhecida e trazia riqueza à província. Sabe-se que as enormes fazendas de ovelhas ocupavam grande parte da área central e meridional da Galácia e que a maioria das terras pertencia ao Império Romano. Como práxis do império, a riqueza da produção da região beneficiava a elite local, e era levada a Roma pelos “mercadores da terra” para enriquecer a autoridade imperial (cf. Ap 18). A maioria da populaçãoestava submetida à escravidão do império e sofria, vivendo na miséria e sofrendo espoliação e violência dos governantes.

Com o longo processo de romanização, a sociedade gálata era marcada pelo sistema de escravatura. O duro trabalho nas fazendas de ovelhas, por exemplo, empobrecia e enfraquecia o povo. O sofrimento do povo aumentava ainda mais com a dominação cotidiana do império. Para além da brutalidade e violência do exército e da cobrança sistemática do imposto e do monopólio do comércio, a legitimação do poder imperial era feita pela implantação da religião e cultura promovidas pelo Império Romano.

            Até agora, foram escavados três templos júlio-claudianosna Galácia: Ancira, Pessinuntee Antioquia da Pisídia. Os templos, construídos no tempo de Augusto (27 a.C-14 d.C.) ou Tibério (14-37 d.C), eram dedicados ao culto imperial, para implantar e fortalecer o domínio do império via poder e carisma do imperador humano,que era considerado divino. No culto, o evangelho “Boa Nova” de César Augusto, o senhor do império e da terra, era proclamado exaltando o império e o imperador por estabelecerem na terra a paz e a salvação.

            Em todas as áreas controladas por Roma, a Boa Nova do imperador devia ditar e moldar o cotidiano do povo dominado. Sua divulgação era muito eficaz. O evangelho imperial percorria todo o império através da infraestrutura bem desenvolvida – rede de hospedarias, correios, rotas e estradas – com a finalidade de consolidar o mundo num só império. Mas as mesmas estradas, Paulo percorria para levar o evangelho de Jesus Cristo crucificado,introduzindo um novo sistema de relações capaz de mudar a relação humana. Ao vínculo de senhor/escravo podia sobrepor-se o da irmandade e o da liberdade, que foi proclamado nas comunidades da Galácia.

 

Conhecendo as comunidades gálatas

           

Durante a primeira viagem missionária (46-48 d.C.), Paulo e Barnabé provavelmente percorreram o sul da Galácia, a região habitada pelos romanos, gregos e judeus, passando por Icônio, Lístra e Derbe, entre outras (At 13,50-14,28). Eles realizaram a missão entre os judeus e os simpatizantes gentios nas sinagogas por onde passaram, fundando várias comunidades. Paulo voltou para lá durante a sua segunda viagem (49-52 d.C.; cf. At 16,1-8)e percorreu também o norte da Galácia (a região em torno das cidades de Ancira e Pessinunte; cf. At 16,6), evangelizando os gálatas propriamente ditos. Na terceira viagem (53-57 d.C.), ele passou de novo pela Galácia e pela Frígia (cf. At 18,23).

            Por volta do ano 50 d.C., nessa região do norte da Galácia, as comunidades de seguidores e seguidoras de Jesus foram fundadas numa circunstância incomum: “Vocês sabem que foi por causa de uma doença física que lhes anuncieio evangelho pela primeira vez” (4,13). No meio dos gálatas, o “evangelho de Cristo” (1,7) havia causadograndeentusiasmo, pois a irmandade pregada em nome de Jesus Cristo crucificado suscitou o sonho de vida e liberdade para quem vivia sob o jugo da escravidão do império. Porém, o entusiasmo durou pouco. Logo depois da segunda visita de Paulo,essas comunidades “abandonaram tão depressa a graça de Cristo”(1,6) e caíram na escravidão da Lei de Moisés, perdendo a irmandade e a unidade. E, para piorar a situação, alguns membros inclusive contestaram a autoridade de Paulo e seu evangelho (1,7-10).

            Possivelmente, durante a longa permanência de dois anos e meio em Éfeso (53-55 d.C.), uma espécie de base missionária(cf. At 18,18-21,1), Paulorecebeu notícias de um ataque contra ele e seu evangelho em meio às comunidades da Galácia que estavamem crise. A carta aos Gálatas, então, foi escrita, com muita emoção, como uma resposta de Paulo nesse contexto conturbado[2], por isso, ela revela a discussão e a situação pelas quais as comunidades gálatas estavam passando e, ao mesmo tempo, descreve as características delas em relação a Paulo:

a)    Os membros das comunidades gálatas eram gentios que só conheceram o Deus judeu e a mensagem de Jesus depois de sua conversão de vida (4,8-9; 5,2-3; 6,12).

b)    Comunidadescom a língua gálata: “Foi desenhada a imagem de Jesus Cristo crucificado” (3,1). Provavelmente, Paulo teve de recorrer a desenhos para se comunicar, com muito amor e esforço, trabalhandoduramente (4,11).

c)    As comunidades acolheram Paulo, um enfermo judeu, sem discriminação (4,13-14). O laço afetivo das comunidades com Paulo era tão forte que fez Paulo declarar: “se fosse possível, vocês arrancariam os próprios olhos e os dariam a mim” (4,15).

d)    Paulo anunciara a “cruz de Jesus Cristo” (3,1) na qual a graça de Deus foi dada: “Não torno inútil a graça de Deus. Porque, se a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu inutilmente” (2,21). Por graça, os convertidos gálatas tornaram-se pessoas capazes de amar e de se pôra serviço uns dos outros (5,13).

e)    No batismo, o evangelho de Jesus Cristo crucificado com seu amor gratuito, foi assumido pelos gentios pobres sofridos como fonte de liberdade, irmandade e igualdade em ummundo escravagista (3,23-29).

f)     O ponto principal de discussão e de crise é “outro evangelho” que “distorce o evangelho de Cristo” (1,7). O grupo judaizante radical insiste: o seguidor e a seguidora de Jesusdevem submeter-se à prática de todas as leis judaicas, como a circuncisão e as leis alimentares, para alcançar a salvação (2,11-21). Mas dessa forma o grupo agitador estápregando outro evangelho e levando as comunidades ao jugo da Lei, provocandosegregação e desunião (2,11-21).

g)    Os convertidos gálatas estavam prestes a se submeter à Lei de Moisés (4,1) e a trair a amizade e alealdade para com Paulo, abandonando o verdadeiro evangelho (1,6) e decaindo da graça (5,4). Diante disso, ele afirma: “Meus filhos, por vocês eu sofro de novo as dores de parto, até que Cristo se forme em vocês” (4,19). É a situação de dificuldades e sofrimentos.

h)   Alguns membros, convertidos gálatas, se fizeram circuncidar (5,2-4) e exerciam pressões sobre os outros membros das comunidades (6,13).

i)     Havia também o grupo helenizado com o espírito da busca desenfreada por bens, poder e prazer, que radicalizou a liberdade, transformando-a em libertinagem, causando o problema ético e aumentando as tensões internas (5,13-24).   

j)      Os opositoresnegaram inclusivea autoridade do apóstolo Paulo e seu evangelho (1,1-5.7-10).

k)    Diante da situação real de perder as comunidades “amadas”, Paulo, indignado e revoltado, chegou a dizer: “Ó gálatas sem juízo! Quem foi que os enfeitiçou, a vocês que tinham diante dos olhos os traços bem claros de Jesus Cristo crucificado?” (3,1); “Aqueles demonstram interesse por vocês, mas a intenção deles não é boa. Querem separá-los de mim, para que vocês se interessem por eles” (4,17) “Que se mutilemde uma vez aqueles que estão perturbando vocês!” (5,12).

 

Informado da grave ameaça para a fé em Jesus Cristo crucificado, seu verdadeiro evangelho e a prática do amor, igualdade e unidade, bem como da acusação contra sua condição do apóstolo, Paulo escreveu a carta aos Gálatas, cheia de raiva e emoção, provavelmente de Éfeso, entre54/55 d.C.

 

Conhecendo a carta aos Gálatas

 

A carta aos Gálatasémais profundamente marcada pelo tom duro e polêmico do que qualquer outra carta, e é a única carta sem a costumeira ação de graçasnas saudações inicial e final. Ela contém cinco argumentos usados por Paulo contra os adversários: histórico, teológico, exegético, batismal e emocional.

Eis um possível esquema para a carta:

a)    Introdução– 1,1-10: Apresentação do tema “o Evangelho de Cristo”, baseado na graça de Deus.

b)    Primeira parte – 1,11-2,21: Relato autobiográfico e histórico.

c)    Segunda parte – 3,1-5,12: Argumento contra os adversários.

d)    Terceira parte– 5,13-6,10: Exortação ética – liberdade e caridade.

e)    Conclusão– 6,11-18: Severa advertência contra o grupo judaizante radical.

 

Conhecendo os conteúdos específicos

            Convencido do perigo que representava para o Evangelho de Jesus Cristo crucificado, Paulo não poupou críticas fortes contra os grupos formados pelos judaizantes e helenizados radicais, que estavam desvirtuando o valor salvífico do amor gratuito de Jesus Cristo crucificado, a manifestação da graça de Deus. Ele procurou mostrar os conteúdos do verdadeiro Evangelho com base na experiência e na Escritura:

1) Pregar e praticar o Evangelho de Jesus Cristo crucificado (Gl 1,7): o verdadeiro evangelho (Gl 2,5.14) é a própria pessoa de Jesus de Nazaré, que pregou e praticou a justiça e deu sua vida na cruz, por puro amor ao próximo (Gl 1,3-5). A fé na cruz de Jesus é fonte da liberdade, da irmandade, da vida, porque é na cruz de Jesus de Nazaré, que Deus Pai manifestou sua graça, seu amor primeiro e gratuito.

2) Ser herdeiro da promessa de Abraão pela fé em Jesus Cristo crucificado (Gl 3,6-18): o fato de Jesus Cristo – que conviveu com os pecadores e morreu na cruz por amor ao próximo – ser reconhecido como o Messias sofredor e o Filho de Deus (Gl 4,4), é a mensagem essencial de que o Deus da promessa a Abraão (Gn 15,4-8; 18,17-18) reconhece a pessoa não em virtude das obras da Lei, mas de sua prática do amor ao próximo. A fé no Messias sofredor abre a salvação a todos os povos, sem o pré-requisito do cumprimento da Lei, como a circuncisão e as leis alimentares (Gl 2,11-14).   

3) Ter liberdade em Jesus Cristo crucificado (Gl 5,1): no Espírito (o poder do amor gratuito) de Jesus Cristo crucificado, a pessoa torna-se “nova criatura” (Gl 6,15), fica liberta de qualquer lei e de qualquer diferença que possa privilegiar a uns e marginalizar a outros (Gl 3,28).

4) Viver segundo o Espírito (Gl 5,5): quem caminha na fé e no amor do Crucificado é acompanhado pela força criadora, profética, sapiencial e libertadora do Espírito para viver de modo como Jesus viveu: na liberdade, na justiça e no amor, criando irmandade, paz e esperança.

5) Carregar o peso uns dos outros (Gl 6,2):  a verdadeira liberdade cristã é fruto do Espírito de Deus, que leva à vida de caridade, justiça e fraternidade, sobretudo de amor-serviço aos outros (Gl 5,13-6,10).

6) Evangelizar com base na realidade (Gl 4,12): ao contrário do grupo judaizante, Paulo considerou e respeitou os anseios por liberdade e igualdade do povo sofrido e escravizado, formando comunidades de fraternidade sem a imposição das leis e costumes judaicos.

7) Evangelizar junto com os pobres (Gl 2,10): Paulo evangelizou as nações, pondo-se ao lado dos pobres, mergulhando no mundo deles, carregando os fardos do trabalho (Gl 6,2), organizando comunidades de partilha e de fraternidade junto com os pobres (1Cor 4,9-13).

8) Carregar as marcas de Jesus que significam as cicatrizes dos maus-tratos sofridos e suportados pelo Nazareno (Gl 6,14.17; cf. 2Cor 4,10): quem assume o Evangelho de Jesus Cristo crucificado, seu amor gratuito e o espírito da liberdade, será perseguido e maltratado no mundo do legalismo judaico e da escravização do Império. As pessoas que seguem Jesus, porém, mesmo perseguidas, devem gloriar-se na cruz de Jesus Cristo, porque é dela que nasce “o poder de Deus e sabedoria de Deus” (1Cor 1,24), para construir o mundo da partilha e da fraternidade: o Reino antecipado de Deus. 

 

Essas são algumas das principais convicções que orientam e animam Paulo em sua missão. As certezas que podem ser encontradas ao longo da carta aos Gálatas amadureceram aos poucos, à luz de seu próprio trabalho missionário e pastoral, guiado pela reflexão sobre as palavras, ações e vida de Jesus à luz da Escritura, e também à luz da realidade do povo sofrido, dos empobrecidos, marginalizados e escravos como os gálatas.

No contexto do imperialismo romano e da religião legalista e ritualista do judaísmo oficial, Paulo pregou Jesus crucificado e ressuscitado e ousou caminhar na contracorrente, com a proposta do amor gratuito e da justiça do “Servo sofredor”. Quase dois mil anos se passaram, mas o imperialismo continua encarnando em muitas “feras”, devorando pessoas inocentes mediante guerras, ditaduras brutais, trabalhos em condição de escravidão ou semiescravidão, economia selvagem, fomes, violências. E muitas igrejas, com seu Cristo triunfalista, legalista e ritualista, servem para conservar as feras do presente.

 

 

Mensagens principais

 

            A carta aos gálatas tem como tema central a defesa do evangelho do amor gratuito de Deus, manifestado em Jesus Cristo crucificado. Diante do grupo judaizante radical que pregava a necessidade da Lei para a Salvação, Paulo insiste na ação amorosa: “o homem não é justificado pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo. E nós cremos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas obras da Lei. Porque, pelas obras da Lei, ninguém será justificado” (2,16). O importante é a fé que age pelo amor, e não o cumprimento de normas e ritos.

            Esta carta continua questionando o nosso seguimento de Jesus Cristo: a nossa vivência do evangelho é baseada na graça e no Espírito ou no cumprimento de ritos e preceitos? Uma pergunta que precisamos sempre nos fazer. Com estes encontros, queremos mergulhar no estudo e na reflexão da carta aos Gálatas, buscando luzes para iluminar nossa caminhada pessoal e comunitária. Paulo insiste que a vida no Espírito é uma vivência livre, tendo como fruto o amor e seus desdobramentos, que sempre visam o bem do próximo. Eis os principais textos e mensagens para nossa caminhada cristã hoje:

 

            Primeiro: O evangelho de Jesus Cristo Crucificado (2,11-21). As primeiras comunidades que seguiam Jesus enfrentaram muitas dificuldades em romper as barreiras impostas pela Lei judaica, que separavam os judeus dos não judeus. O seguimento de Jesus Cristo exige a superação de toda e qualquer barreira que discrimina e marginaliza uma pessoa. Revendo o passado, vamos olhar a nossa prática para identificar o que nos impede de viver uma vida conforme as exigências do evangelho e reafirmar nosso compromisso com as pessoas crucificadas de hoje.

            Segundo: Todos somos um em Cristo Jesus (3,1-14.26-29). É importante compreender que a fé nos torna filhas e filhos de Deus e que Nele todos somos um. Cada povo é diferente, mas as diferenças não justificam nenhuma forma de separação. Vamos refletir sobre a unidade que somos chamadas e chamados a vivenciar a partir de Cristo Jesus. Como pessoas batizadas, a nossa vocação é deixar que Cristo viva em nós, ou seja, olhar a realidade com os olhos D’Ele e romper as barreiras social, religiosa, cultural e de gênero.

            Terceiro: Viver o amor e a ternura na missão (4,12-20). Paulo vivenciou uma experiência profunda de acolhimento nas comunidades dos gálatas apesar de sua doença, o que favoreceu o amor e a amizade entre eles. Em nossas atividades missionárias, é fundamental criar e aprofundar laços de amizade e de afeição com as pessoas com as quais entramos em contato. A vivência de verdadeiras relações fraternas na missão fortalece o compromisso com a construção do Reino de Deus.

            Quarto: O viver em Cristo nos torna livres (5,1-12). Como pessoas cristãs, recebemos o Espírito de Deus como força criadora, profética, sapiencial e libertadora para viver como Jesus viveu. As comunidades cristãs têm a missão de vivenciar a liberdade e uma fé que age através do amor (5,7). A vida cristã deve ser orientada pela esperança, justiça e solidariedade. O excessivo apego a normas, ritos e regras pode nos afastar do seguimento de Jesus de Nazaré.

            Quinto: Livres para amar e servir (5,13-6,10). Para não deixar dúvidas sobre a identidade cristã, Paulo apresenta uma série de exortações às comunidades dos gálatas e reforça que a vocação cristã é para a liberdade, o que implica viver segundo o Espírito. Aquele ou aquela que vive segundo as obras da carne provoca rupturas consigo, com Deus e com o próximo. A vida segundo o Espírito é pautada pelo amor, que se expressa no serviço solidário para com todas as pessoas. Estas exortações continuam sendo atuais para nós e nossas comunidades.

 

            Que a leitura e a reflexão da carta aos Gálatas possam lançar novas luzes para a nossa vivência individual e comunitária. Deixemos ecoar em nossos corações os apelos para uma vida cuja marca seja o amor solidário para com todas as pessoas: “Não nos cansemos de fazer o bem” (6,9a).

 



[1] Importante: onde não estiver indicado o livro bíblico, a citação é da carta aos Gálatas. Os textos foram extraídos, em sua maioria, da Nova Bíblia Pastoral, São Paulo, 2015.

[2] Alguns pesquisadores têm proposto as comunidades do sul da Galácia como os destinatários da carta aos Gálatas, datando a carta por volta do ano 50, de Corinto. Esta discussão continua em aberto. 

  Sumário: 1. Livro do Deuteronômio: Introdução  2. "Não explore o assalariado necessitado e pobre". Uma leitura de Dt 24,10-22  3...