O EVANGELHO
DE JESUS CRISTO CRUCIFICADO
Uma
leitura de Gl 2,11-21
Shigeyuki Nakanose, svd
Maria Antônia Marques
Resumo:
Além do evangelho do imperador
romano, Paulo enfrenta “outro evangelho” (Gl 1,7), baseado na observância da
lei da pureza, que justifica a segregação nas comunidades gálatas. Ele prega o
“verdadeiro evangelho” (Gl 2,5), fundamentado na justiça que vem da fé no amor
e na graça de Jesus Cristo crucificado (Gl 5,1-12), construindo a união das
pessoas sem as barreiras ética, social e de gênero (Gl 3,28).
Na véspera do Natal, um menino
estava vendendo doce caseiro em frente a um supermercado. Era um dia chuvoso e
frio. O olhar dele estava triste e perdido. Nos ônibus, no metrô, nas praças e
ruas de nossas cidades e nas portas de nossas igrejas há muitas pessoas com
esse mesmo semblante. A situação de miséria é muito grande, e muitas vezes
perdemos a sensibilidade diante das pessoas que sofrem. Em 2019, o Brasil tinha
4,4 milhões de crianças em situação de extrema pobreza. Com a pandemia da covid19,
os números são ainda maiores. Muita gente está crucificada pela miséria, fome, violência,
humilhação...
Por volta do ano 50 d.C., Paulo
conviveu com a gente crucificada pelo Império Romano: “Até o presente, passamos
fome e sede, estamos mal vestidos, somos maltratados, não temos morada certa, e
nos cansamos trabalhando com as próprias mãos. Somos amaldiçoados, e bendizemos.
Somos perseguidos, e suportamos. Somos caluniados, e encorajamos. Até agora,
nos tornamos como o lixo do mundo, a escória de todos” (1Cor 4,11-13).
Nessa realidade, Paulo pregou o evangelho de Jesus Cristo crucificado contra o
evangelho do Imperador e o do judaísmo oficial e legalista.
1. O evangelho de Jesus
Cristo crucificado
O termo “evangelho” (euangelion em grego) era usado na propaganda e no culto ao
imperador romano (cf. HORSLEY, 2004, 21-32; HARRISON, 2016, 165-184). Os
arautos, funcionários encarregados de divulgar os decretos, as campanhas, as
vitórias e os avanços do Império partiam de Roma para todas as principais
cidades e, quando lá chegavam, iniciavam o seu anúncio com as palavras: “Boa
Nova” de César, filho de Deus, ao povo da cidade.
Há várias inscrições descobertas que contêm o
termo evangelho usado pelo imperador romano César Augusto (27 a.C.-14 d.C.).
Nelas, o imperador Augusto, o senhor do Império e da terra, foi proclamado como
“filho divino” e “salvador” (soter em grego), porque foi ele que estabeleceu
na terra a paz e a salvação definitivas, tanto para o passado como para o
presente e o futuro. Seu nascimento e sua manifestação – advento e epifania – foram descritos, nas inscrições, como evangelho
poderoso!
Com uma boa infraestrutura
(exército, estrada, correio, hospedaria, administração da cidade etc.), o Império propagava o seu evangelho nas celebrações
públicas com muita pompa, para agitar, atrair, influenciar e controlar o povo!
O evangelho do imperador era uma das “armas poderosas” para impor e legitimar o
poder e a dominação do Império, ditando e moldando o cotidiano do povo dominado
e sofrido, como o da Ásia Menor e o da Grécia.
Foi a esse mundo do Império Romano que
Paulo, um judeu convertido ao movimento de Jesus Messias, se dirigiu, anunciando
o evangelho alternativo, manifestado em Jesus Cristo crucificado (Gl 3,14),
para converter o mundo em uma assembleia (ekklesia) bem diferente. Ele tentou
construir comunidades da “partilha e do serviço” nesse mundo do “acúmulo e da dominação”
do Império.
O fato de Paulo pregar a palavra e a
prática de Jesus judeu é significativo. Denota que o evangelho de Jesus Cristo
crucificado tem suas raízes no judaísmo. A “Boa Nova” é moldada pela história
dos valores culturais e das identidades dos judeus que transparecem na
Escritura:
a) “Aquele
que me anunciou, dizendo: ‘Saul está morto’, quando achava que era portador de
boa notícia, eu o agarrei e o matei em Siceleg. Este foi meu pagamento a ele
pela boa notícia” (2Sm 4,10). No Antigo Testamento, o termo evangelho, besorah em hebraico (euangelion na LXX, Septuaginta – a
versão dos Setenta), originalmente, designa a recompensa pelo anúncio de uma
vitória, ou também o próprio anúncio de uma boa nova como a de uma vitória
sobre o inimigo.
b)
“Como são belos sobre os montes os pés do
mensageiro que anuncia a paz, que traz a boa notícia, que anuncia a salvação,
que diz a Sião: ‘Seu Deus reina’” (Is 52,7). Durante o exílio da Babilônia, o Segundo
Isaías profetiza que os mensageiros acorrerão ao país para anunciar o
evangelho, “boa notícia” (salvação): Javé inaugurará o seu reinado da justiça e
da graça em Sião (cf. Is 52,1-12).
c)
“O espírito do Senhor Javé está sobre mim,
porque Javé me ungiu, Ele me enviou para dar a boa notícia aos pobres, para
curar os corações feridos, para proclamar a libertação
dos escravos e pôr em liberdade os prisioneiros” (Is 61,1). Diante da exploração
econômica e da escravidão
no período pós-exílico, o Terceiro Isaías anuncia o evangelho da salvação de
Javé para inverter a realidade sofrida do povo, pela exploração dos teocratas
judeus, aliados e servidores do Império Persa: Javé protege a vida, sobretudo
das pessoas empobrecidas (cf. Is 65,17-25).
d) “Cantem
para Javé, bendigam o seu nome! Proclamem, dia após dia, a sua vitória (boa
notícia ou salvação). Majestade e esplendor estão à sua frente, força e
ornamento em seu santuário” (Sl 96,2.6). No judaísmo oficial do templo, os
teocratas (o grupo de Neemias e Esdras) pregam a salvação pela realização de
certos ritos cultuais no templo (sacrifícios de expiação, jejuns) e pela
observância da Lei (sábado, circuncisão, lei do puro e do impuro etc.), desprezando,
contudo, os preceitos elementares de justiça social e de amor ao próximo.
Paulo, um judeu fariseu do judaísmo oficial,
pregava o evangelho (salvação) pela observância da Lei, submetendo o povo ao
jugo do enorme aparato de prescrições referentes ao puro e impuro. Inclusive,
para a visão escatológica dos fariseus, a salvação chegará quando os gentios participarem do povo de Israel pela observância da
Lei, sobretudo pela prática da circuncisão. Quando todos forem praticantes
irrepreensíveis da Lei, então a salvação virá!
Ao aceitar a fé em Jesus Cristo crucificado,
Paulo, porém, mudou de um modo fariseu de ver a Deus e ler a Escritura para outra visão e vivência do
judaísmo (cf. ARBIOL, 2018, 45-85). Como homem bem educado e estudado na Escritura, ele começou a pregar e praticar o
evangelho do judaísmo popular da libertação dos pobres, condenados pela lei do
puro e do impuro: “E como o anunciarão, se não forem enviados? Como está
escrito: ‘Como são belos os pés dos que anunciam boas notícias!’ Mas nem todos
obedeceram ao evangelho” (Rm 10,15-16a).
Paulo adapta o texto de Is 52,7, escrito pelo
grupo do Segundo Isaías que exerceu suas atividades entre os desterrados na
Babilônia. O evangelho do grupo assegura a todos a vida por meio da partilha e
da solidariedade (cf. Is 55,1-3), o que Paulo anuncia como “boas notícias” ao
longo da sua atividade missionária. Por isso, o termo evangelho aparece como
uma marca registrada de Paulo nos seus escritos. Das 76 vezes em que o termo
“evangelho” é empregado no Novo Testamento, 48 encontram-se nas “cartas
genuinamente consideradas” como as de Paulo.
É notável também que o significado do
evangelho de Paulo é marcado pela cruz de Jesus Cristo: “Anunciamos Cristo
crucificado” (1Cor 1,23); “Pois Cristo me enviou, não para batizar, mas para
anunciar o evangelho, sem usar a sabedoria da linguagem, para que a cruz de
Cristo não se torne inútil. De fato, a linguagem da cruz é loucura para os que
se perdem. Mas, para os que se salvam, para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,17-18).
A crucificação, uma pena cruel, era loucura
para o povo do tempo de Paulo. No contexto judaico, de modo particular, o que
era dependurado na árvore se tornaria objeto da maldição de Deus (cf. Dt
21,22-23). Por isso, Jesus de Nazaré, condenado pelos sumos sacerdotes e pelo
sinédrio, devia ser visto como um homem amaldiçoado e considerado transgressor
da Lei e dos rituais do puro e impuro. E, de fato Jesus, foi visto assim por
muita gente do judaísmo oficial, pessoas que entendiam que as doutrinas, como a
teologia da retribuição, as leis religiosas, como as da pureza, do sábado, os
rituais e as liturgias tinham mais importância que a vida, e que a transgressão
de alguma parte delas justificava castigos, violências e até mesmo a morte.
Porém, o evangelho, a “Boa Notícia”, de Jesus de Nazaré contrasta frontalmente
com esta forma de viver a religião e a espiritualidade. O evangelho de Jesus
nos ensina a centralidade da pessoa humana (cf. Mc 2,27).
Por isso, para Paulo, o fato de Jesus Cristo,
que conviveu com os pecadores e morreu na cruz por amor ao próximo, ser
reconhecido como o Messias servo e o Filho de Deus (Gl 4,4), é a mensagem
essencial de que o Deus da promessa a Abraão não é um Deus que reconhece a
pessoa em virtude das obras da Lei, mas de sua prática de
amor ao próximo (Gl 3,8-14). A fidelidade ao evangelho do Jesus Cristo
crucificado deve ser traduzida na prática do bem e em
favor da vida plena do ser humano: cooperação mútua, igualdade, unidade etc. (Gl
3,26-29: cf. DUFF, 2017, 111-192).
O evangelho da cruz, como centro de todo
ensinamento cristão, deve ser difundido na vida cristã do dia a dia. Com esta
proposta, Paulo incansavelmente desempenhou-se na missão no meio dos gentios,
ajudando a fundar as comunidades dos seguidores e seguidoras de Jesus Cristo na
Ásia Menor, Macedônia e Grécia. Algumas delas foram as comunidades gálatas. Com grande entusiasmo, os gálatas haviam acolhido o
evangelho de Jesus Cristo crucificado, o que
suscitou o sonho de vida e liberdade para quem vivia sob o jugo da sociedade
escravagista do Império. Porém, o entusiasmo durou pouco. As comunidades
“abandonaram tão depressa a graça de Cristo”:
Fico admirado de que vocês, para
seguirem outro evangelho, tenham abandonado tão depressa aquele que os chamou
mediante a graça de Cristo. Não existe outro evangelho. No entanto, alguns
estão deixando vocês confusos, querendo distorcer o evangelho de Cristo. Maldito seja aquele que
anunciar a vocês outro evangelho, ainda que sejamos nós mesmos ou algum anjo do
céu (Gl
1,6-8).
Com a Escritura na mão, o grupo judaizante,
que anunciava outro evangelho baseado na observância da Lei, agitou e provocou uma crise nas comunidades gálatas, minou inclusive a autoridade apostólica de Paulo.
Informado da grave ameaça para a fé centralizada na cruz de Jesus Cristo, Paulo
escreve a carta aos Gálatas, cheia de ira e paixão, para defender o evangelho
de Jesus Cristo crucificado. Já na primeira parte da carta (Gl 1,11-2,21), ele
narra o incidente com o grupo judaizante em Antioquia, acusando-o de “hipócrita
da Lei”. Defende o seu evangelho,
baseado na fé no amor e na graça de Jesus Cristo, manifestado na cruz (cf. CROSSAN;
REED, 2002, 167-215; HEYER, 2008, 165-179; SCHREINER, 2010, 31-59).
2. Justificados pela fé em
Jesus Cristo crucificado
Diante da grave ameaça para a fé em Jesus
Cristo crucificado e a acusação contra a sua autoridade apostólica nas
comunidades gálatas, Paulo levanta o argumento histórico e existencial contra
os seus opositores judaizantes (Gl 2,11-14), para expor o seu ensinamento sobre
o evangelho de Jesus Cristo crucificado (Gl 2,15-21). É uma síntese de seu
pensamento sobre a salvação pela fé no amor de Jesus Cristo, não pelo
cumprimento da Lei, o resumo conciso de seu ensino, bem ilustrado e argumentado
por um fato histórico ocorrido na importante comunidade de Antioquia, uma base
importante de expansão do evangelho de Jesus Cristo no meio dos gentios.
Paulo mesmo narra o incidente histórico: “Quando
Cefas chegou a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, porque ele merecia
repreensão. De fato, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele comia com
os gentios. Porém, depois que chegaram aqueles de Tiago, ele evitava os gentios
e se afastava, com medo dos circuncidados. E outros judeus caíram no mesmo
fingimento de Cefas, a tal ponto que até mesmo Barnabé se deixou levar pelo
fingimento deles” (Gl 2,11-13).
Cefas, ou seja, Pedro, chegou a Antioquia.
Ele nunca tinha vivido numa comunidade mista onde judeus e gentios conviviam em
irmandade. Adotou os hábitos normais à mesa da comunidade de Antioquia e foi
tomar as refeições com os gentios, desprezando as normas restritivas do puro e
do impuro. Porém, o comportamento aberto de Pedro com os fiéis de Antioquia não
durou muito tempo. “Alguns da parte de Tiago” (os “circuncidados”) chegaram de
Jerusalém, insistindo na aplicação das leis alimentares com maior rigor (cf.
KEENNER, 2019, 152-166).
Eles deviam ser os “falsos irmãos” (Gl 2,4),
cristãos judaizantes radicais (cf. At 15,1), que exigiam dos gentios cristãos a
observância da Lei em sua totalidade (os 613 mandamentos), incluindo a
circuncisão e as leis alimentares (não comer porco, não comer carnes
sacrificadas a ídolos, não comer com os gentios etc.). Lutavam pela imposição
da Lei para todos os membros da comunidade cristã, inclusive os gentios crentes
em Jesus Cristo.
Diante dos olhos dos judaizantes radicais,
Pedro evitou comer com os gentios. Outros judeus da comunidade, incluindo
Barnabé, caíram no mesmo fingimento de Pedro. O fato foi grave, pois ele não
somente era judeu, mas também membro da comunidade-mãe de Jerusalém, que
determinava as normas de comportamentos dos judeus crentes em Jesus Cristo. O
gesto hipócrita de um líder da igreja contagiou os outros e pôs tudo a perder,
chegando até mesmo a desviar a comunidade do “verdadeiro evangelho”: “Quando,
porém, vi que não agiam corretamente segundo a verdade do evangelho, então eu
disse a Cefas diante de todos: ‘Se você é judeu e vive como os gentios, e não
como os judeus, como pode obrigar os gentios a viver como os judeus’” (Gl 2,14:
cf. PESCE, 2017, 168-172).
O verdadeiro evangelho é, antes de
tudo, a própria pessoa de Jesus de Nazaré crucificado, que praticou a justiça e
deu a vida por puro amor ao próximo. A cruz de Jesus é fonte da liberdade, da
irmandade e da vida. A salvação, portanto, não é realizada pelas obras da Lei,
mas, sim, pela graça de Deus manifestada na vida de Jesus Cristo crucificado.
Pela prática do verdadeiro evangelho de Jesus Cristo, a pessoa é considerada
justa e passa da morte para a vida, o que Paulo chama de “justificação”: “O
homem não é justificado pelas obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo. E nós
cremos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo, e não pelas
obras da Lei. Porque pelas obras da Lei, ninguém será justificado” (Gl 2,16-17;
cf. 3,8.11.24; 5,4: cf. DeSILVA, 2018, 216-262).
O grupo judaizante admite que a promessa da
salvação aos descendentes de Abraão poderia ser estendida aos gentios
“pecadores”, como Paulo ironicamente declara: “Nós somos judeus de nascimento,
e não gentios pecadores” (Gl 2,15; cf. Rm 2,12). Porém, para serem salvos, ou
seja, justificados por Deus, os gentios têm de viver como judeus, filhos de
Abraão. Devem observar a Lei, que abrange todos os aspectos da vida e provoca
consequentemente desigualdade e segregação ética, religiosa, cultural e de
gênero.
Na vida da comunidade, a justificação, a
salvação antecipada, deveria acontecer na irmandade sem as barreiras raciais,
sociais e sexuais, manifestada, por exemplo, na eucaristia na qual a comunidade
deveria confessar realmente a presença de Jesus Cristo, com todos os seus
membros partilhando a caridade. Com a implantação da Lei, como a circuncisão e
as leis alimentares, a irmandade da comunidade seria dividida e destruída,
portanto não poderia haver eucaristia, a comunhão mútua (cf. 1Cor
11,17-34).
Paulo já havia negado e combatido a
justificação pela Lei, no processo da mudança: “Considero tudo como perda, diante do bem superior que é o conhecimento
de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi tudo, e considero tudo como
lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado nele. E isso, não tendo mais como
justiça minha aquela que vem da Lei, mas aquela que vem de Deus e se baseia na
fé” (Fl 3,8-9). Ao apresentar o seu próprio esvaziamento, Paulo faz forte crítica contra os judaizantes que propõem confiança
na observância da Lei para abrir as portas da salvação. Para ele, a cruz de Jesus é o ponto de
partida da libertação de tudo o que escraviza e diminui a vida.
Desde o ingresso ao movimento de Jesus Cristo,
Paulo afirma ter deixado o caminho da salvação pela observância da Lei e continuava pregando a salvação pela graça e pelo
amor de Jesus Cristo crucificado. Por isso, ele responde aos seus opositores:
“De fato, se eu volto a construir as coisas que havia destruído, aí sim eu me
mostro um transgressor” (Gl 2,18). Ele ironicamente pergunta: eu necessito da
Lei para salvar-me? Aí sim, sou pecador ao não
cumprir a Lei. Para ele, submeter-se à Lei outra vez como no tempo de Saulo fariseu,
perseguidor dos seguidores de Jesus Cristo, seria envolver-se novamente no jugo
da escravidão da Lei: promover o pecado da segregação, desigualdade e
marginalização das pessoas.
E, o que é mais grave, o grupo judaizante faz
impor aos gentios a canga da escravidão da Lei, em nome do evangelho de Jesus
Cristo, baseado na observância da lei da pureza. É por isso que Paulo não se
contém e afirma com vigor: “Com efeito, pela Lei eu morri para a Lei, a fim de
viver para Deus. Estou crucificado com Cristo” (Gl 2,19).
Desde a primeira página da carta aos Gálatas,
Paulo reforça a mesma ideia: “Senhor Jesus
Cristo, que se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos livrar do
mundo mau” (Gl 1,3-4). A cruz de Jesus é o resultado da sua fidelidade à missão
da justiça e compromisso com seus irmãos até o fim, no “mundo mau”. Por seu amor gratuito, Jesus deu sua vida por nós. Ser
cristão não é basear a própria vida e a da comunidade nas obras da Lei, para
obter a salvação. Ao contrário, deve “morrer para a Lei a fim de viver para o
Deus da vida” e viver no amor gratuito do Jesus Cristo crucificado, ou seja,
“estar crucificado com Cristo” (Gl 6,14).
No batismo, o que Paulo ou qualquer cristão,
de ontem e hoje, deve assumir: estar crucificado, morrer e ressuscitar para
Deus. “Quero assim conhecer a Cristo, o poder da sua ressurreição e a comunhão
nos seus sofrimentos, assumindo a mesma forma da sua morte, para ver se de
alguma forma alcanço a ressurreição dentre os mortos” (Fl 3,10-11), confessa
Paulo. Conhecer Jesus Cristo crucificado e ressuscitado é viver no amor e na
graça do Deus da vida, que transforma a morte em “nova vida” (Rm 6,4).
Por isso, acreditar e pregar o evangelho da
cruz é colocá-lo no centro da vida e viver na mais profunda comunhão com Jesus
Cristo, a ponto de poder dizer: “E já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em
mim. E a vida que vivo agora na carne, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que
me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2,20). É a declaração existencial
de Paulo na caminhada missionária: “Trazemos sempre em nosso corpo a agonia de
Jesus, para que em nosso corpo também se manifeste a vida de Jesus” (2Cor 4,10;
cf. Rm 8,9-10).
Ser fiel à “vida de Jesus” é viver no amor
gratuito de Jesus Cristo crucificado, não na acomodação escravizadora do
ritualismo, do moralismo e da estrita observância da Lei para obter a salvação
de Deus. Basear a vida em regras ou na observância da Lei que obriga Deus a
retribuir aos “justos” seria a negação da graça de Deus, dada na cruz de Jesus:
“Não torno inútil a graça de Deus. Porque, se
a justiça vem através da Lei, então Cristo morreu inutilmente” (Gl 2,21; cf. 3,21-22).
3. O escândalo da cruz
A centralidade da cruz no evangelho de Paulo
transparece em suas palavras:
·
“Pois Deus não nos destinou para a ira, e sim
para possuirmos a salvação por meio de nosso Senhor Jesus Cristo. Ele morreu
por nós, para que, acordados ou dormindo, vivamos com ele” (1Ts 5,9-10).
·
“Irmãos, sejam meus imitadores e observem os que
vivem de acordo com o modelo que em nós vocês têm. Porque eu já lhes disse
muitas vezes, e agora repito chorando: há muitos que vivem, como inimigos da
cruz de Cristo” (Fl 3,17-18).
·
“Pois Cristo me enviou, não para batizar, mas
para anunciar o evangelho, sem usar a sabedoria da linguagem, para que a cruz
de Cristo não se torne inútil. De fato, a linguagem da cruz é loucura para os que se perdem, Mas, para os que se salvam,
para nós, é poder de Deus” (1Cor 1,17-18).
A última palavra de Paulo menciona a
“loucura” para um judeu fariseu pelo fato de acreditar em Jesus humilhado e crucificado como o
Messias de Javé, o Filho de Deus. Pois o Messias, “Ungido”, aparecia, na
corrente oficial do judaísmo, como um rei poderoso da casa de Davi: “Eu ungi o
meu rei sobre Sião, minha montanha santa! Proclamarei o decreto de Javé, que
disse para mim: ‘Você é meu filho, hoje eu gerei você!’” (Sl 2,6-7; cf. 2Sm 7,12-16). O
Messias esperado haveria de derrotar seus inimigos, e, por isso, não seria
humilhado e crucificado por eles. A cruz seria um escândalo!
Paulo mesmo expressou a cruz como a
humilhação (Fl 2,8) e a maldição (Gl 3,13). Entretanto, ele ingressou no
movimento de Jesus, converteu-se de um modo farisaico de ver a Deus, a Escritura,
as pessoas e as coisas, e passou a fazer parte desta outra corrente do
judaísmo, que via e seguia Jesus Cristo como o justo rejeitado (cf. Sb 1,12-14.
2,12-20) e, sobretudo o servo sofredor: “Oprimido, ele se humilhou, não abriu a
boca. Para este grupo, Jesus é cordeiro levado ao matadouro, como ovelha muda
diante do tosquiador, ele não abriu a boca. Foi preso, julgado injustamente. E
quem se preocupou com a vida dele? Pois foi cortado da terra dos vivos e ferido de morte
por causa da transgressão do meu povo” (Is 53,7-8).
Paulo não cita de modo claro os cânticos do
servo de Isaías, mas alude a eles de modo implícito ao falar da vida e da missão de Jesus (cf.
ARBIOL, 2018, 57-59):
·
"Vejam meu servo, a quem eu sustento.
Ele é o meu escolhido, nele tenho o meu agrado. Eu coloquei sobre ele meu
espírito, para que promova o direito entre as nações” (Is 42,1). Graças ao
Espírito de Javé, o servo promove a sua missão no meio de todas as nações.
·
A missão do servo sem o poder da força e da
violência é realizar a justiça e promover, na
fidelidade, o direito para todo o povo, sobretudo para as pessoas
empobrecidas e enfraquecidas (Is 42,2-7).
·
A missão do servo é marcada pela escuta da
palavra de Deus, pela fidelidade no anúncio, pela perseguição e resistência (Is
50,4-11).
·
A morte do servo sofredor é consequência da
sua prática da justiça e da sua fidelidade até o fim (Is 53,1-9).
·
O texto do servo insiste na
substituição do sacrifício de expiação pela prática da solidariedade (Is 53,10).
·
Ele morre, mas a sua vida terá
continuidade por meio de seus descendentes. O projeto da justiça e do direito
para os pobres triunfará (Is 53,11).
Paulo assume a identificação de Jesus Cristo
crucificado como o servo sofredor e desenvolve sua fé e missão na linha da
missão do servo: o projeto da justiça e do direito para toda a terra. Leva o
evangelho de Jesus Cristo, Messias crucificado, como a fonte da graça e da benção
de Deus para os gentios na Galácia, Macedônia e Grécia. Ao anunciar e prometer
bênçãos (Boa Nova) de Jesus Cristo crucificado para todos os povos, Paulo enfrenta opções rivais, como
o evangelho do imperador a serviço dos
interesses do império e o judaísmo oficial baseado na observância da Lei, bem como das pessoas que seguiam Jesus e ainda estavam
vinculadas a esse judaísmo.
De suas cartas, deduz-se que Paulo converte o
“escândalo da cruz” em seu ensinamento central para combater e argumentar
contra os seus opositores (o Império e o judaísmo oficial), e para dialogar com
suas comunidades em problemas:
a) “Nós anunciamos Cristo crucificado, escândalo
para os judeus, loucura para as nações. No entanto, para os que são chamados,
tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Deus e sabedoria de Deus. [...]
Deus, no entanto, escolheu o que é loucura no mundo para desacreditar os
sábios. E Deus escolheu o que é fraqueza no mundo para desacreditar os fortes.
E Deus escolheu o que é insignificante e sem valor no mundo, coisas que nada
são, para reduzir a nada as coisas que são. E isso para que nenhuma criatura se
glorie diante de Deus” (1Cor 1,23-24.27-29). No seu trabalho para com os
pobres, “o lixo do mundo e a escória de todos”
(1Cor 4,13), Paulo percebe e compreende que Deus escolhe as pessoas pobres e
insignificantes para manifestar sua força, tal como é revelada em Jesus Cristo
crucificado. Isso seria uma oposição e crítica
contra o caminho do poder e violência.
b)
“Aqueles que querem aparecer na carne são os
que forçam vocês a circuncidar-se. E o fazem só mesmo para não serem
perseguidos por causa da cruz de Cristo. Porque nem mesmo aqueles que se fazem
circuncidar observam a Lei. No entanto, eles querem que vocês se façam
circuncidar, para assim se vangloriarem da carne de vocês. Quanto a mim, que eu
nunca me vanglorie, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. Por meio
dele, o mundo está crucificado para mim, e eu para o mundo” (Gl 6,12-14).
Concluindo a carta ao Gálatas, Paulo confirma a sua acusação ao grupo
judaizante radical de falsidade: insistir na prática da Lei para evitar a
perseguição; obrigar os gentios crentes em Jesus Cristo a observar a Lei. O
argumento crítico dele está na cruz de Jesus Cristo, em sua morte por amor às
pessoas injustiçadas no “mundo mau”. Ao pregar e experimentar o evangelho da
cruz, Paulo traz seu corpo as marcas de Jesus
Cristo.
c) “Portanto,
de agora em diante, não julguemos mais uns aos
outros. Em vez disso, tenham o propósito de não ser causa de tropeço ou
escândalo para o irmão. Eu sei, e estou convencido no Senhor Jesus, que nada é
impuro em si mesmo. Mas se alguém considera uma coisa como impura, esta coisa
se torna impura para ele. Porém, se você deixa seu irmão entristecido por
questão de alimento, você já não está agindo por amor. Com o alimento que você
come, não cause a perdição de alguém pelo qual Cristo morreu” (Rm 14,13-15). Paulo aborda um dos problemas
cotidianos da convivência cristã: certas normas alimentares da pureza. Prega a
tolerância e o amor ao próximo, por quem Jesus Cristo viveu, morreu e
ressuscitou (1Cor 8,11). O amor manifestado na cruz de Jesus deve ditar a
edificação mútua das pessoas na comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus
Cristo.
A força do amor e da graça que Paulo descobre
na cruz de Jesus está em oposição à grande ambição do ser humano: querer
colocar-se no lugar de Deus. Jesus, o Filho de Deus, podendo exercer o poder,
“esvaziou-se a si mesmo e tomou a forma de escravo, tornando-se semelhante aos
homens” (Fl 2,7). Nesse esvaziamento e humilhação de Deus, manifesta-se o poder
de viver, amar e servir aos próximos: “A vida que vivo agora na carne, eu a
vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim” (Gl
2,20).
4. Uma palavra final
Deus continua pondo-se ao lado dos
crucificados de hoje. A presença maciça dos crucificados se faz realidade em
nosso Brasil, que ocupa o segundo lugar na má distribuição de
rendas entre a sua população, atrás somente de Catar. No Brasil, os 1%
mais rico concentram 28,3% da renda total do país (no Catar essa proporção é de
29). Ou seja, quase um terço da renda está nas mãos dos mais ricos.
Sabemos quem são as pessoas crucificadas de
hoje? Depende de cada um. Depende da experiência do nosso cotidiano. Basta
olhar ao nosso redor com a mínima sensibilidade humana: crianças mendigando nas
ruas, crianças doentes morrendo apenas por causa da falta de alimentação e de cuidados básicos, os moradores
das ruas, os milhões de desempregados em busca de trabalho etc. Ou – para as pessoas cristãs –
olhar com a fé em Jesus Cristo crucificado e seu evangelho. São os olhares dos
servos sofredores que marcam, orientam e ditam a vida cristã. Olhares que fazem
repensar e alimentar nossa pastoral, nossas liturgias, catequeses, teologias, ações sociais e o jeito de ler a Escritura.
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